sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O mais novo fantasma da Monsanto

 Jeff Ritterman, M.D.*

Em El Salvador, CKDu tornou-se a segunda maior causa de mortalidade masculina. 
No Sri Lanka, número de mortes ultrapassa 20 mil. E no Brasil?

Estudo sugere: doença ainda inexplicada, que destrói rins e já matou milhares de agricultores, pode estar relacionada ao glifosato, herbicida-líder da transnacional

O herbicida Roundup, da Monsanto, foi vinculado à epidemia de uma misteriosa doença renal fatal que apareceu na América Central, no Sri Lanka e na Índia.

Há anos, os cientistas vêm tentando desvendar o mistério de uma epidemia de doença renal crônica que atingiu a América Central, a Índia e o Sri Lanka. A doença ocorre em agricultores pobres que realizam trabalho braçal pesado em climas quentes. Em todas as ocasiões, os trabalhadores tinham sido expostos a herbicidas e metais pesados. A doença é conhecida como CKDu (Doença Renal Crônica de etiologia desconhecida). O “u” (de “unknown”, desconhecido) diferencia essa enfermidade de outras doenças renais crônicas cuja causa é conhecida. Poucos profissionais médicos estão cientes da CKDu, apesar das terríveis perdas impostas à saúde dos agricultores pobres, de El Salvador até o sul da Ásia.

Catharina Wesseling, diretora regional do Programa Saúde, Trabalho e Ambiente (Saltra) na América Central, pioneiro nos estudos iniciais sobre o surto ainda não esclarecido na região, diz o seguinte: “Os nefrologistas e os profissionais da saúde pública dos países ricos não estão familiarizados com o problema ou duvidam inclusive que ele exista”.

Wesseling está sendo diplomática. Na cúpula da saúde de 2011, na cidade do México, os EUA rechaçaram uma proposta dos países da América Central que teria listado a CKDu como uma das prioridades para as Américas.

David McQueen, um delegado norte-americano do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, que posteriormente se desligou dessa agência, explicou a posição de seu país. “A ideia era manter o foco nos fatores de risco chave que poderíamos controlar e nas grandes causas de morte: doença cardíaca, câncer e diabetes. E sentíamos que a posição que assumimos incluía a CKD”.

Os norte-americanos estavam errados. Os delegados da América Central estavam certos. A CKDu é um novo tipo de doença. Essa afecção dos rins não resulta da diabetes, da hipertensão ou de outros fatores de risco relacionados com a dieta. Diferentemente do que acontece na doença renal ligada à diabetes ou à hipertensão, muitos dos danos da CKDu ocorrem nos túbulos renais, o que sugere uma etiologia tóxica.


Agricultor salvadorenho voltando dos campos. Palo Grande, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Hoje, a CKDu é a segunda maior causa de mortalidade entre os homens em El Salvador. Esse pequeno e densamente povoado país da América Central tem atualmente a maior taxa de mortalidade por doença renal no mundo. Os vizinhos Honduras e Nicarágua também têm taxas extremamente altas de mortalidade por doença renal. Em El Salvador e Nicarágua, mais homens estão morrendo por CKDu do que por HIV/Aids, diabetes e leucemia juntas. Numa região rural da Nicarágua, tantos homens morreram que a comunidade é chamada “A Ilha das Viúvas“.

Além da América Central, a Índia e o Sri Lanka foram duramente atingidos pela epidemia. No Sri Lanka, mais de 20 mil pessoas morreram por CKDu nas últimas duas décadas. No estado indiano de Andhra Pradesh, mais de 1.500 pessoas receberam tratamento para a doença desde 2007. Como a diálise e o transplante de rim são raros nessas regiões, a maioria dos que sofrem de CKDu irão morrer da doença renal.

Numa investigação digna do grande Sherlock Holmes, um cientista-detetive do Sri Lanka, dr. Channa Jayasumana, e seus dois colegas, dr. Sarath Gunatilake e dr. Priyantha Senanayake, lançaram uma hipótese unificadora que poderia explicar a origem da doença. Eles argumentaram que o agente agressor deve ter sido introduzido no Sri Lanka nos últimos trinta anos, uma vez que os primeiros casos apareceram em meados da década de 1990. Essa substância química também devia ser capaz de, em água dura, formar complexos estáveis com os metais e agir como um escudo, impedindo que esses metais sejam metabolizados no fígado. O composto também precisaria agir como um mensageiro, levando os metais até o rim.

Mural celebrando a vida agrária tradicional. Juayua, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Sabemos que as mudanças políticas no Sri Lanka no final dos anos 1970 levaram à introdução dos agroquímicos, principalmente no cultivo do arroz. Os pesquisadores procuraram os prováveis suspeitos. Tudo apontava para o glifosato, um herbicida amplamente utilizado no Sri Lanka. Estudos anteriores tinham mostrado que o glifosato liga-se aos metais e o complexo glifosato-metal pode durar por décadas no solo.

O glifosato não foi originalmente criado para ser usado como herbicida. Patenteado pela Stauffer Chemical Company em 1964, foi introduzido como um agente quelante, porque se liga aos metais com avidez. O glifosato foi usado primeiramente na remoção de depósitos minerais da tubulação das caldeiras e de outros sistemas de água quente.

É essa propriedade quelante que permite que o glifosato forme complexos com o arsênio, o cádmio e outros metais pesados encontrados nas águas subterrâneas e no solo na América Central, na Índia e no Sri Lanka. O complexo glifosato-metal pesado pode entrar no corpo humano de diversas maneiras: pode ser ingerido, inalado ou absorvido através da pele. O glifosato age como um cavalo de Troia, permitindo que o metal pesado a ele ligado evite a detecção pelo fígado, uma vez que ele ocupa os locais de ligação que o fígado normalmente obteria. O complexo glifosato-metal pesado chega aos túbulos renais, onde a alta acidez permite que o metal se separe do glifosato. O cádmio ou o arsênio causam então danos aos túbulos renais e a outras partes dos rins, o que ao final resulta em falência renal e, com frequência, em morte.

Por enquanto, a elegante teoria proposta pelo dr. Jayasumana e seus colegas pode apenas ser considerada geradora de hipóteses. Outros estudos científicos serão necessários para confirmar a hipótese de que a CKDu realmente se deve à toxicidade do glifosato-metal pesado para os túbulos renais. Até agora, esta parece ser a melhor explicação para a epidemia.

Outra explicação é a de que o estresse por calor pode ser a causa, ou a combinação entre estresse por calor e toxicidade química. A Monsanto, claro, tem defendido o glifosato e contestado a afirmação de que ele tenha qualquer coisa a ver com a origem da CKDu.

Ainda que não exista uma prova conclusiva a respeito da causa exata da CKDu, tanto o Sri Lanka quanto El Salvador invocaram o princípio da precaução. El Salvador baniu o glifosato em setembro de 2013 e atualmente está procurando alternativas mais seguras. O Sri Lanka baniu o glifosato em março deste ano por causa de preocupações a respeito da CKDu.

Mural celebrando a vida camponesa tradicional, Palo Grande, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

O glifosato tem uma história interessante. Depois de seu uso inicial como agente descamador pela Stauffer Chemical, os cientistas da Monsanto descobriram suas qualidades herbicidas. A Monsanto patenteou o glifosato como herbicida na década de 1970 e tem usado a marca “Roundup” desde 1974. A empresa manteve os direitos exclusivos até o ano 2000, quando a patente expirou. Em 2005, os produtos com glifosato da Monsanto estavam registrados em mais de 130 países para uso em mais de cem tipos de cultivo. Em 2013, o glifosato era o herbicida com maior volume de vendas no mundo.

A popularidade o glifosato se deve, em parte, à percepção de que é extremamente seguro. O site da Monsanto afirma:

"O glifosato se liga fortemente à maioria dos tipos de solo e por isso não permanece disponível para absorção pelas raízes das plantas próximas. Funciona pela perturbação de uma enzima vegetal envolvida na produção de aminoácidos que são essenciais para o crescimento da planta. A enzima, EPSP sintase, não está presente em pessoas ou animais, representando baixo risco para a saúde humana nos casos em que o glifosato é usado de acordo com as instruções do rótulo".

Por causa da reputação do glifosato em termos de segurança e de efetividade, John Franz, que descobriu a sua utilidade como um herbicida, recebeu a Medalha Nacional de Tecnologia em 1987. Franz também recebeu o Prêmio Carothers da Sociedade Americana de Química em 1989, e a Medalha Perkins da Seção Americana da Sociedade da Indústria Química em 1990. Em 2007, foi aceito no Hall da Fama dos Inventores dos EUA pelo seu trabalho com o herbicida. O Roundup foi nomeado um dos "Dez Produtos que Mudaram a Cara da Agricultura" pela revista Farm Chemicals, em 1994.

Nem todo mundo concorda com essa percepção a respeito da segurança do glifosato. A primeira cultura de Organismo Geneticamente Modificado (OGM) resistente ao Roundup (soja) foi lançada pela Monsanto em 1996. Nesse mesmo ano, começaram a aparecer as primeiras ervas daninhas resistentes ao glifosato. Os fazendeiros responderam usando herbicidas cada vez mais tóxicos para lidar com as novas superpragas que haviam desenvolvido resistência ao glifosato.

Além da preocupação a respeito da emergência das superpragas, um estudo com ratos demonstrou que baixos níveis de glifosato induzem perturbações hormonal-dependentes graves nas mamas, no fígado e nos rins. Recentemente, dois grupos de ativistas, Moms Across America (Mães em toda a América) e Thinking Moms Revolution (Revolução das Mães Pensantes), pediram à Agência Americana de Proteção Ambiental (EPA) para pedir um recall do Roundup, citando um grande número de impactos adversos sobre a saúde das crianças, incluindo déficit de crescimento, síndrome do intestino solto, autismo e alergias alimentares.

O glifosato não é um produto comum. Além de ser um dos herbicidas mais usados no mundo, é também o pilar central do templo da Monsanto. A maior parte das sementes da empresa, incluindo soja, milho, canola, alfafa, algodão, beterraba e sorgo, são resistentes ao glifosato. Em 2009, os produtos da linha Roundup (glifosato), incluindo as sementes geneticamente modificadas, representavam cerca de metade da receita anual da Monsanto. Essa dependência em relação aos produtos com glifosato torna a Monsanto extremamente vulnerável à pesquisa que questiona a segurança do herbicida.

As sementes resistentes ao glifosato são desenhadas para permitir que o agricultor sature os seus campos com o herbicida para matar todas as ervas daninhas. A safra resistente ao glifosato pode então ser colhida. Mas se a combinação do glifosato com os metais pesados encontrados na água subterrânea ou no solo destroi os rins do agricultor no processo, o castelo de cartas desmorona. É isso que pode estar acontecendo agora.

Um confronto sério está tomando corpo em El Salvador. O governo norte-americano tem pressionado El Salvador para que compre sementes geneticamente modificadas da Monsanto ao invés de sementes nativas dos seus próprios produtores. Os EUA têm ameaçado não liberar quase US$ 300 milhões em empréstimos caso El Salvador não compre as sementes da Monsanto. As sementes geneticamente modificadas são mais caras e não foram adaptadas para o clima ou para o solo salvadorenho.

A única “vantagem” das sementes OGM da Monsanto é a sua resistência ao glifosato. Agora que ele se mostrou uma possível, e talvez provável, causa de CKDu, essa “vantagem” já não existe.


Mural, Concepción de Ataco, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Qual a mensagem dos EUA para El Salvador, exatamente? Talvez a hipótese mais favorável seja a de que os EUA não têm ciência de que o glifosato pode ser a causa da epidemia de doença renal fatal em El Salvador e que o governo sinceramente acredita que as sementes OGM vão proporcionar um rendimento melhor. Se for assim, uma mistura de ignorância e arrogância está no coração desse tropeço na política externa norte-americana. Uma explicação menos amigável poderia sugerir que o governo coloca os lucros da Monsanto acima das preocupações acerca da economia, do meio ambiente e da saúde dos salvadorenhos. Essa visão poderia sugerir que uma mistura trágica de ganância, descaso e insensibilidade para com os salvadorenhos está por trás da política americana.

Infelizmente, existem evidências que corroboram a segunda visão. Os EUA parecem apoiar incondicionalmente a Monsanto, ignorando qualquer questionamento a respeito da segurança dos seus produtos. Telegramas divulgados pelo WikiLeaks mostram que diplomatas norte-americanos ao redor do mundo estão promovendo as culturas OGM como um impertativo estratégico governamental e comercial. Os telegramas também revelam instruções no sentido de punir quaisquer países estrangeiros que tentem banir as culturas OGM.

Qualquer que seja a explicação, pressionar El Salvador, ou qualquer país, para que compre sementes OGM da Monsanto é um erro trágico. Não é uma política externa digna dos EUA. Vamos mudar isso. Vamos basear nossa política externa, assim como a doméstica, nos direitos humanos, na vanguarda ambiental, na saúde e na equidade.

Pós-escrito: Depois que vários artigos a respeito da questão das sementes apareceram na mídia, o The New York Times informou que os EUA reverteram sua posição e devem parar de pressionar El Salvador para que compre as sementes da Monsanto. Até agora, os empréstimos ainda não foram liberados.

*Por Jeff Ritterman, no Truthout | Tradução: Maria Cristina Itokazu

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

PELA PROIBIÇÃO DO USO DE AGROTÓXICOS DENTRO DO CAMPUS DA UFRPE.

UMA LUTA A FAVOR DA VIDA.
Núcleo de Agroecologia e Campesinato, DCE e ADUFERPE  na  luta contra os agrotóxicos no campus da UFRPE-Recife.

Em 12 de outubro de 2012, o Núcleo de Agroecologia e Campesinato – NAC da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), protocolou uma carta à Reitora solicitando a proibição do uso de agrotóxicos dentro da área do Campus, aqui na sede de Dois Irmãos. (Protocolo nº 018109/2012-88)

Nossos argumentos, para este pedido de proibição, estão sustentados por um conjunto de fatores e agravantes, entre os quais destacamos:

a) Este Campus encontra-se dentro de uma APA – Área de Proteção Ambiental.
b) Os locais de uso dos venenos são locais de trânsito de pessoas sendo que a maioria delas sequer toma conhecimento dos riscos a que estão sujeitos.
c) As áreas onde são aplicados os agrotóxicos são próximas aos córregos ou canais de drenagem cujas águas alimentam o Rio Capibaribe.
d) A poluição ambiental dos venenos, inclusive em zonas próximas a prédios e restaurante (Mesa Farta - Associação dos Professores), coloca em risco todos os frequentadores e transeuntes.
e) Um dos agrotóxicos que continua sendo usado dentro do Campus é o herbicida Glifosato, proibido para uso em áreas urbanas pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
f) Pesquisas comprovam que os agrotóxicos causam graves danos à saúde e ao meio ambiente.

No mês de julho, a ADUFERPE e o DCE se associaram ao NAC nesta luta, protocolando outra carta à Reitora reiterando o pedido de proibição de agrotóxicos dentro do campus (Protocolo nº 23082.014462/2014-51, de 18/07/2014). Conjuntamente, as entidades promoveram uma serie de atividades no dia 18 de julho, entre elas a projeção do filme O Veneno está na Mesa 2, de Silvio Tendler, seguido de debates.

Também foi realizado um ato simbólico, que constou da colocação de faixas dentro do campus, pedindo o fim do uso de agrotóxicos e foram pregadas cruzes em vários locais da área da universidade, onde eventualmente são usados agrotóxicos. 




Durante o ato, que contou com a presença de estudantes, professores, servidores técnico-administrativos e de um grupo de indígenas Xukurus, foi encontrada na área uma caixa vazia do herbicida Roundup.


E outras embalagens de agrotóxicos, como exemplificamos, abaixo:


Na mesma data, o NAC entregou à Reitora um dossiê com um conjunto de informações, reforçando o pedido de proibição do uso de agrotóxicos dentro do campus, assim como um abaixo assinado com mais de 1.000 assinaturas de pessoas que fazem parte da comunidade universitária. Na ocasião, a Reitora disse que iria ler os documentos e depois chamaria as entidades (NAC, ADUFERPE e DCE) para uma conversa, o que não ocorreu até o momento.
No mesmo dia, o Departamento de Agronomia colocou uma nota na página da universidade, justificando o uso de venenos dentro da área do campus e argumentando sobre o “uso correto”.
Entretanto, segundo especialistas da área, não há possibilidades de “uso seguro” de agrotóxicos, muito menos em zonas urbanas, como é o caso do nosso Campus, que além de tudo está localizado em área de proteção ambiental. Como adverte a professora Raquel Rigotto, do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará, por um conjunto de razões que ela evidencia, deveríamos “reconhecer que não temos condições de fazer o uso seguro” dos agrotóxicos, razão pela qual deveríamos deixar de utilizar estes produtos “Já que as consequências do uso (in) seguro de agrotóxicos para a vida são graves, extensas, de longo prazo e algumas irreversíveis ou ainda desconhecidas.”, afirma a Doutora. 

Como agravante, no caso do Campus da UFRPE, em Recife, as áreas de hortas e de pesquisas agrícolas, onde normalmente são usados agrotóxicos, estão localizadas muito próximas de mananciais de água, o que indica que o uso desses produtos químicos pode trazer sérios riscos de contaminação dos recursos hídricos, além de afetar a fauna e a flora de uma área ambiental protegida por lei.




segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Quem tem medo da agricultura ecológica? (II)

Esther Vivas*

A agricultura ecológica despertou, nos últimos tempos, as mais variadas “iras”, sendo objeto de todos os tipos de calúnias. Seu êxito e múltiplos apoios foram proporcionais às críticas recebidas. No entanto, quem tem medo da agricultura ecológica? Por que tanto esforço em desautorizá-la?

Todas estas perguntas foram formuladas em um artigo anterior, onde analisávamos as mentiras por trás de afirmações como “a agricultura ecológica não é mais saudável, nem melhor para o meio ambiente do que a agricultura industrial e transgênica”. Hoje, abordaremos outras questões em relação à sua eficiência, o preço e a falsa alternativa que significa uma “agricultura ecológica” a serviço das grandes empresas. Como dizíamos então: diante da calúnia, dados e informação.

Da eficiência e o preço

“A agricultura ecológica é pouco eficiente e cara”, dizem seus detratores. Aqueles que realizam esta afirmação, esquecem-se que é exatamente o atual modelo de agricultura industrial o que desperdiça anualmente um terço dos alimentos produzidos para consumo humano, em escala mundial, 1,3 bilhão de toneladas de comida, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Trata-se de uma agricultura de “usar e jogar”. Consequentemente, quem é o ineficiente, aqui? Mesmo sem estes números, é óbvio que o atual modelo de agricultura industrial, intensiva e transgênica não satisfaz as necessidades alimentares básicas das pessoas. A fome, em um mundo onde se produz mais comida do nunca, é o melhor exemplo, tanto nos países do Sul, como aqui.

De sua parte, a agricultura ecológica e de proximidade demonstrou que garante melhor a segurança alimentar às pessoas do que a agricultura industrial e que permite uma maior produção de comida, especialmente em lugares desfavoráveis, segundo as palavras do relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, Olivier de Schutter, apoiando-se em seu relatório ‘A agroecologia e o direito à alimentação’. A partir dos dados expostos neste trabalho, a reconversão de terras em países do Sul para o cultivo ecológico aumentava sua produtividade em até 79%, na África, em especial, a reconversão permitia um aumento de 116% das colheitas. Os números falam por si.

Caso falemos do preço, sobretudo, fazendo a sua comparação com a qualidade, mais uma vez a agricultura ecológica sai em melhor posição. Talvez não pareça em um primeiro momento, pois há um discurso único, que se repete e se repete e se repete, que nos diz que o ecológico é sempre mais caro. No entanto, não é assim. Muitas vezes, depende de onde e do que compramos. Não é o mesmo comprar em um supermercado ecológico ou em um comércio ‘gourmet’ do que comprar diretamente dos camponeses, no mercado ou por meio de um grupo ou cooperativa de consumo agroecológico, nos primeiros os preços costumam ser muito mais caros do que nos segundos, onde seu custo pode ser igual ou, inclusive, inferior ao comércio tradicional em se tratando de um produto da mesma qualidade.

Além disso, teríamos que nos perguntar como pode ser que determinados produtos ou alimentos no supermercado sejam tão baratos. Estamos pagando seu preço real? Qual é a sua qualidade? Em que condições foram elaborados? Quantos quilômetros percorreram do campo à mesa? Muitas vezes, um preço muito baixo esconde uma série de custos invisíveis: condições de trabalho precárias na origem e destino, má qualidade do produto, impacto ambiental, etc. Trata-se de uma série de gastos ocultos que acabamos socializando entre todos, porque se a comida percorre longas distâncias e aumenta a mudança climática, com a emissão de gases de efeito estufa, quem paga por isso? Se comemos alimentos de baixa qualidade, que tem um impacto negativo em nossa saúde, quem os custeia? Em definitivo, como diz o refrão: Pão para hoje e fome para amanhã.

E não só isso, quando entramos no ‘super’, o que compramos? Calcula-se que entre 25% e 55% da compra no supermercado é compulsiva, fruto de estímulos externos que nos instam a comprar, sem qualquer raciocínio. Quantas vezes fomos ao supermercado para comprar quatro coisas e saímos com o carrinho cheio? O supermercado é uma máquina de vender, não resta a menor dúvida, é um dos espaços mais estudados de nossa vida cotidiana, para que nossa compra nunca seja aleatória.

Outra afirmação mil vezes repetida é a que diz que “a agricultura ecológica é apenas para os ricos”, ou quando quem fala busca o insulto, algo frequente entre o setor “antiecológico”, dirá que “a agricultura ecológica é apenas para mauricinhos”. Tanto em um caso como em outro, aos que afirmam estas palavras, asseguro que nunca colocarm o pé em um grupo ou cooperativa de consumo agroecológico, porque seus membros, em geral, podem ser qualificados com muitos adjetivos, mas de “ricos” e “mauricinhos” têm muito pouco. São pessoas que apostam em outro modelo de agricultura e alimentação, buscando se informar, tomar consciência, buscar dados contrastados sobre os impactos daquilo que comemos em nossa saúde, no meio ambiente, entre o campesinato.

Nesta vida, “instruem-nos” para pensar que “gastamos” dinheiro em comida, mas se trata de “gastar” ou “investir”? A educação é chave. Daí, que é fundamental fazer chegar os princípios e as verdades da agricultura ecológica ao conjunto da população. Comer bem, e ter direito a comer bem, são para todos.

Uma “agricultura ecológica” a serviço do capital

“A agricultura ecológica não tem fins sociais e aumenta a pegada de carbono”, dizem seus detratores. Aqui, a pergunta chave é: de que agricultura ecológica nós estamos falando? Como dizíamos no artigo anterior, uma das ameaças à agricultura ecológica é justamente sua cooptação, a assimilação de sua prática por parte da indústria alimentar. Cada vez são mais as empresas do ‘agribusiness’ e os supermercados que apostam neste modelo de agricultura livre de pesticidas e aditivos químicos, mas esvaziando-a de qualquer olhar para a mudança social. Seu objetivo é claro: neutralizar a proposta. Trata-se de uma “agricultura ecológica” a serviço do capital, com alimentos quilométricos, escassos direitos trabalhistas na produção e na comercialização. Esta não é a alternativa na qual nós apostamos por uma mudança no modelo agroalimentar. A agricultura ecológica, no meu entender, só tem sentido a partir de uma perspectiva social, local e camponesa, como sempre defendeu a maioria de seus impulsionadores.

Por outro lado, surpreende-me que os detratores da agricultura ecológica se preocupem tanto com a pegada de carbono e o impacto dos gases de efeito estufa no meio ambiente, quando sua aposta por uma agricultura industrial é precisamente uma das principais responsáveis dos mesmos. Segundo o relatório ‘Alimentos e mudança climática: o elo esquecido’, da GRAIN, entre 44% e 55% dos gases de efeito estufa são provocados justamente pelo conjunto do sistema agroalimentar global, como consequência da soma das emissões provocadas pela mudança no uso do solo e o desmatamento; a produção agrícola; o processamento, o transporte e o empacotamento dos alimentos; e os desperdícios gerados. Se aos críticos da agroecologia a mudança climática tanto lhes inquieta, sugiro que apostem em uma agricultura ecológica, local e camponesa.

Quem impõe o quê?

“Impõem-nos a agricultura ecológica. Eu quero comer transgênicos, e não me deixam”, dizem alguns, embora pareça uma brincadeira. No entanto, quem impõe o quê? A agricultura industrial, sim, foi resultado de uma imposição, a da Revolução Verde, promovida a partir dos anos 1940, e em décadas posteriores, por governos como o dos Estados Unidos e fundações como as da Ford e Rockefeller, e que implicou na progressiva substituição de um modelo de agricultura tradicional, onde os camponeses tinham a capacidade de decidir sobre o que e como cultivavam, por uma agricultura industrial “adicta ao petróleo e aos fitossanitários, que levou à privatização dos bens comuns, e em particular das sementes. Muitos camponeses não tiveram escolha. Hoje, vemos as consequências deste modelo agrário: fome, saída dos camponeses, patentes sobre as sementes, monopólio de terras, etc.

Além disso, a principal imposição agrária foi, sem dúvidas, a do cultivo transgênico, e a impossível coexistência entre agricultura transgênica e agricultura convencional e ecológica é o melhor exemplo. As plantações transgênicas, por meio do ar e a polinização, contaminam outras. É dessa forma que funciona o que poderíamos chamar “a ditadura transgênica”. Em Aragão e na Catalunha, nas áreas onde mais se cultiva transgênico, concretamente a variedade de milho MON 810 da Monsanto, a produção de milho ecológico praticamente desapareceu em razão dos múltiplos casos de contaminações sofridas. As evidências são irrefutáveis, e quem diz o contrário mente.

A enumeração de frases com o único propósito de desautorizar a agricultura ecológica poderia continuar. São tantas as falsidades vertidas que este artigo poderia ter três, quatro e até cinco partes, mas paro aqui. Espero que as informações e os dados levantados possam ser de utilidade para aqueles que frente a verdades únicas perguntam e questionam a realidade que nos é imposta.

*Artigo publicado no jornal espanhol Público, 14-07-2014. A tradução é do Cepat | Instituto Humanitas Unisinos.