sexta-feira, 20 de maio de 2016

Ana Primavesi: Observar, Conhecer e Integrar - Passos para uma Ecologia da Vida*

A partir de seu olhar sobre o solo, Ana Primavesi defende a necessidade de apreender amplamente as dinâmicas formas de vida para só então se integrar num sistema produtivo ecológico.


Por: João Vitor Santos

Ela tem 96 anos e a paixão de toda a vida: o solo. Essa é Ana Maria Primavesi, pioneira no Brasil no tema da produção ecológica. Uma pesquisadora de laboratório e campo, capaz de pôr em prática uma perspectiva sistêmica sobre as formas de vida. “É preciso observar mais a natureza”, resume ela, ao falar sobre os caminhos para se produzir alimento saudável para o ser humano e um meio ambiente sadio. Hoje, vive com a filha, Carin, numa casa na cidade de São Paulo, construída por ela nos anos 1950, cercada de jardins. Apesar das limitações físicas em decorrência de uma lesão no fêmur, a professora procura ir ao campo, mesmo que seja pertinho da metrópole.

Para compreender o que está por trás da “lógica Primavesi”, é preciso também conhecer um pouco mais dessa mulher. Nasceu em 1920 em St. Georgen ob Judenburg, na Áustria. Chegou ao Brasil em 1949 e naturalizou-se. “Após a guerra, com tantas mortes na família, também dos irmãos queridos, eu e meu marido, que tínhamos perdido todas as propriedades agrícolas, decidimos que era preciso procurar por paz, respirar ares novos, onde houvesse maior possibilidade de realizar nossos sonhos e esperanças”, recorda. 

Ana Maria cresceu em meio ao campo e, atenta e observadora, daí foi um passo para se tornar uma cientista da área. “Meus pais eram muito ligados à atividade agropecuária e florestal. E na universidade éramos levados a realizar atividades de pesquisa desde o primeiro semestre. Fui treinada a observar já em termos de sistema de produção, de forma holística”. “Também tive dois professores que ensinaram a fazer um tipo de ‘exame clínico’ com muita observação e visão integrada”, recorda. Assim que chegou ao Brasil, ela e o marido passaram a produzir no interior de São Paulo, a partir de técnicas ecológicas de manejo do solo. Assim, aliava a pesquisa nos laboratórios à prática de campo. “Tivemos certeza de nosso caminho quando meu marido conseguiu produzir um trigo tipo canadense (de altíssima qualidade) em um solo degradado”, destaca.

Mas no que consistem seus princípios? Para Ana, é preciso “observar a natureza, em como ela, a partir de ecossistemas primários, construía os ecossistemas naturais clímax, com alta capacidade de manter vida e produção, e com todas as estruturas de ecossistemas desenvolvidos”. Ou seja, observar a ecologia da vida e, assim a conhecendo, se integrar ao sistema amplo capaz de gerar vida, produzir e até corrigir desequilíbrios com o mínimo de interferência humana. É mais do que pensar em produção orgânica, é também pensar em produção ecológica.

Apesar de tudo, a pesquisadora não se entrega, e isso pode ser constatado na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line em abril de 2016. Com quase um século de vida, Ana aceita o convite para a entrevista por e-mail. Conta com a ajuda de Carin para lidar com a internet. É uma forma de seguir propagando suas ideias e semeando esperança. “A sociedade é parte do aspecto ambiental, mas insiste-se em separar isso nos cursos universitários. Esse conhecimento fragmentado, compartimentado, analista, especializado é o grande mal”, sentencia, ao mesmo tempo que provoca a pensar numa “educação ambiental de como a vida funciona”.

Ana Maria Primavesi é graduada em Agronomia pela Universidade Rural de Viena, com doutorado em Ciências Agronômicas. Em 2012, recebeu o prêmio mundial da agricultura orgânica pela Internacional Federation of Organic Agriculture Movements - IFOAM. Foi professora na Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, pesquisadora da Fundação Mokiti Okada, de São Paulo, e agricultora, pois praticou as técnicas da agroecologia na sua fazenda, em Itaí, São Paulo. Seus ensinamentos podem ser encontrados em cerca de 100 artigos científicos inéditos e 12 livros. Entre os trabalhos de maior influência estão: Manejo Ecológico do Solo: a agricultura em regiões tropicais (São Paulo: Nobel, 1984); Agroecologia: ecosfera, tecnosfera e agricultura (São Paulo: Nobel, 1997); Manejo ecológico de pragas e doenças: técnicas alternativas para a produção agropecuária e defesa do meio ambiente (São Paulo: Nobel, 1988); Manejo ecológico do solo: a agricultura em regiões tropicais (São Paulo: Nobel, 1984); Agricultura sustentável: manual do produtor rural (São Paulo: Nobel, 1992); Manejo ecológico de pragas e doenças: técnicas alternativas para a produção agropecuária e defesa do meio ambiente (São Paulo: Nobel, 1988); Cartilha do solo (São Paulo, Mokiti Okada 2006); Pergunte ao Solo e às Raízes (São Paulo: Nobel, 2014); A Convenção dos Ventos (São Paulo: Expressão Popular, 2016).

Acaba de ser lançada sua biografia por Virginia Knabben: Ana Maria Primavesi, histórias de vida e agroecologia (São Paulo: Expressão Popular, 2016).

Confira a entrevista:

IHU On-Line - Como descobriu a sua paixão pelas coisas simples do campo? E como isso a transformou em cientista?

Ana Maria Primavesi - Eu cresci em ambiente rural e meus pais eram muito ligados à atividade agropecuária e florestal (mãe: de canteiros de flores, horta doméstica, plantas medicinais; e pai: de lavouras, criação de gado e atividade florestal). Meu pai fazia melhoramento animal e assim precisava de método e observação. E na universidade nós éramos levados a realizar atividades de pesquisa. Fui treinada a observar, já em termos de sistema de produção, de forma holística. Depois tive dois professores que ensinaram a fazer um tipo de “exame clínico” com muita observação e visão integrada.   

IHU On-Line - Por que a senhora sempre andou tanto no campo quanto no laboratório?

Ana Maria Primavesi - A ciência progride quando sustentada pelos resultados de campo, que por sua vez realimentam as pesquisas científicas com dúvidas a resolver. Com o conhecimento da prática eu tinha muitas dúvidas que precisavam ser esclarecidas. Em realidade, a ciência existe para esclarecer os processos que ocorrem na natureza e que necessitamos conhecer para melhorar o seu manejo e fortalecimento nos sistemas de produção de alimentos e de água doce.

IHU On-Line - A senhora é uma das primeiras no Brasil a tratar do tema agricultura orgânica. Como a senhora descobriu esse tipo de produção? De onde veio sua inspiração?

Ana Maria Primavesi - Em realidade, no início, toda agricultura praticada era orgânica, e, até certo ponto, ecológica. Com ensinamentos de mestres na universidade, fui estimulada a olhar por essa perspectiva. Foram eles que me repassaram os princípios de como analisar o conjunto de fatores em uma atividade agrícola, indo diretamente para a procura das causas. E as causas deveriam ser procuradas com o solo (características de um solo observando na natureza o que resulta maior produtividade de fitomassa ), o comportamento das próprias plantas (sintomas de deficiências minerais, vigor e arquitetura das raízes) e das associações de plantas no campo.

Na realidade, era preciso observar a natureza, em como ela, a partir de ecossistemas primários (rochas aflorando; inóspitos à vida superior e à produção), construía os ecossistemas naturais clímax , com alta capacidade de manter vida e produção, e com todas as estruturas e os serviços ecossistêmicos desenvolvidos. A natureza utiliza as mesmas ferramentas para recuperar solos compactados, mortos biologicamente, abandonados, durante o pousio.

O segredo é a observação, isso eu aprendi com meus pais e alguns professores generalistas (sabem um pouco de tudo do todo). Os especialistas sabem muito de pouco do todo, que chega a ser nada, sabem só de algo específico, sem relação com o todo. Ficam com uma visão muito estreita, para a prática de campo. Esse é também um grande conflito que deveria ser resolvido amigavelmente.  

IHU On-Line - Quais os desafios que enfrentou quando começou a tratar do tema da agricultura orgânica? Quais resistências já foram vencidas e quais ainda persistem nos dias de hoje?

Ana Maria Primavesi - Tivemos certeza de nosso caminho quando meu marido conseguiu produzir um trigo tipo canadense (de altíssima qualidade) em um solo degradado da região de Sorocaba, em São Paulo. O trigo estava sem ferrugem, embora a variedade fosse altamente suscetível. Isso ocorreu após dois anos de práticas de recuperação biológica do solo com coquetel de adubos verdes fibrosos. Quando entramos para a vida acadêmica e docente em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, estávamos no auge da revolução verde que promovia uma agricultura nos moldes de “chão de fábrica”, em que as variabilidades de nossos solos eram uniformizadas com calagens e adubações NPK  pesadas. O objetivo era de atender as exigências de variedades híbridas que respondiam a doses elevadas de nitrogênio, utilizando-se para isso mecanização intensa e irrigação, e depois também herbicidas.

As terras eram uniformizadas. Os olhos d’água e pequenos cursos d’água eram simplesmente riscados do mapa, para facilitar a mecanização. Depois as árvores eram eliminadas para facilitar a administração a olho nu e a aviação agrícola. E, tudo que fosse relacionado à matéria orgânica e seu uso, era proibido. Identificamos que eram promovidos os aspectos físicos e químicos dos solos. Mas não os biológicos. Os biológicos do solo, não das plantas. Os biológicos que usam todo material orgânico, de onde retiram sua energia para agregar o solo e estabilizar os agregados e os macroporos, que são vitais para a saúde das plantas, pois garantem a entrada de água e de ar.

Assim, lutamos pela inclusão por esse aspecto biológico de solo. Isso porque sabíamos que precisávamos de um solo vivo para produzir com abundância e de forma mais barata, pois aumentava a eficiência dos insumos aplicados, que assim poderiam ser utilizados de maneira mais racional.

A luta feroz

Mas a revolução verde não contemplava o aspecto biológico. E a luta foi feroz. Mesmo iniciando como docentes da Universidade nessa visão holística de manejo do solo, da produtividade e da consideração do aspecto biológico por meio do primeiro curso de pós-graduação no Brasil, oficialmente aceito, a resposta deles foi: embora concordemos com esses conhecimentos, não poderemos incluí-los nos cursos regulares de graduação, pois precisamos treinar os estudantes para os concursos públicos, que não contemplam o aspecto biológico.

*Entrevista a Ana Primavesi pela IHU On-Line

quarta-feira, 11 de maio de 2016

"O glifosato é o maior escândalo sanitário da história", diz documentarista

Marie-Monique Robin, que dirigiu "O mundo segundo a Monsanto", critica modelo baseado em veneno e monocultura*
 
 
             Confira a íntegra do documentário ao final da entrevista  - Créditos: institutfrancais

A jornalista e documentarista francesa Marie-Monique Robin, autora do “O mundo segundo Monsanto”, esteve na cidade de Córdoba, no centro da Argentina, e visitou o acampamento de Malvinas Argentina, que resiste à instalação de uma empresa da Monsanto. Ela também conheceu o grupo de mães do bairro Ituzaingó, que lutam por justiça em relação aos casos de câncer na região que são atribuídos às fumigações.
Durante a sua estadia, Marie apresentou seu filme “Agroecologia: as coletas do futuro”, participou de uma roda de conversa na Universidade de Córdoba e declarou como testemunha da megacausa “La Perla”, em que se investigam delitos de lesa-humanidade durante a última ditadura na Argentina.
Em entrevista ao diário La Mañana, a jornalista opinou sobre o “modelo sojero” [termo usado para denominar o modelo de produção centrado no monocultivo de soja] e os impactos do uso de agrotóxicos na sociedade.
La Mañana - Após a visita ao acampamento Malvinas e o encontro com as Mães de Ituzaingó, que sensações você leva de sua visita a Córdoba?
Marie-Monique Robin - O que vejo é que a sociedade civil, os pesquisadores, os médicos e os cidadãos estão acordando da letargia que os acompanhava há 10 anos, quando vim fazer um documentário sobre o avanço da soja na Argentina. Naquele momento, ninguém se preocupava muito com o que estava se passando. Temos que levar em conta que em 2005, na Argentina, o cultivo de soja ocupava 16 milhões hectares. Hoje são 21 milhões [de hectares].
Quando estive com os vizinhos do bairro Malvinas, e as mulheres me diziam que tinham feito circular o documentário “A vida segundo a Monsanto”, me emocionei. Agora, acho que a luta tem que continuar. Gera-me muita dor olhar o estado em que se encontra o país, onde a poluição é muito forte e o glifosato está em todos os lados: na água, na chuva, no solo, nos alimentos…
Essa tomada de consciência de que está falando se aprofunda com a declaração da OMS [Organização Mundial de Saúde] de que o glifosato é cancerígeno…
A classificação da Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer (Iarc), que depende da OMS, é muito importante. Muitos não compreendem essa classificação, mas há três grupos, e o glifosato está no grupo 2. Significa que todos os estudos realizados em animais demonstraram que ele é cancerígeno. Isso é muito sério.
Normalmente, os governos proibiriam sua utilização. Atualmente, estou preparando um novo documentário sobre o glifosato e, entre suas características, ele é cancerígeno. Além disso, é um perturbador endógeno e atua como um hormônio. Por isso, há tantos casos de crianças que nascem com malformações congênitas e tantos abortos espontâneos. E, por último, o glifosato absorve os metais do corpo. Ou seja, por um lado te intoxica com metais pesados e, por outro, absorve os bons metais, como o ferro, que precisamos para ajudar a aumentar a imunidade do corpo.
Por isso, penso (e não sou a única) que o glifosato é o maior escândalo sanitário de toda a história da indústria química. Não é comum que um agrotóxico tenha todos esses efeitos. Depois da decisão da OMS, tomou-se a decisão de proibir sua venda livre na França, porque se utilizava glifosato até no quintal das casas.
É uma primeira etapa, mas estamos aguardando que se proíba absolutamente (como se fiz com o DDT), porque ele atua até em doses muito baixas. Há que erradicá-lo, porque não se pode controlar nem dosar.
A Argentina está preparada para dar esse passo e proibi-lo num futuro próximo?
As pessoas têm a consciência de que o modelo “sojero” e os transgênicos são um problema à saúde pública e à ecologia. Falta os governos criarem políticas ao respeito e, para isso, há que repensar as políticas de agricultura.
Dificilmente o glifosato será proibido de um dia para o outro. De todo jeito, encontrei com vários “sojeros” [produtores de soja] em Rosário que já não querem utilizá-lo, porque têm problemas com o mato resistente ao glifosato.
Eles também estão preocupados com a saúde, mas apontam que, para isso, faz falta apoio do setor público. Nos Estados Unidos, foi criada uma empresa para apoiar os “sojeros” que querem deixar os transgênicos. Será preciso aprender tudo de novo.
Por 20 anos, a única coisa que se fez foi fumigar, semear e coletar. Aliás, a maioria das pessoas que hoje estão vinculadas aos cultivos de soja não é formada por agricultores, mas empresários que não moram onde se fumigam. Quem tem que dar o primeiro passo para pôr um freio às fumigações com agrotóxicos: a Justiça ou o governo?
Os dois. Ambos são importantes porque é preciso acabar com o modelo. Tudo é importante: a pressão da sociedade civil, a Justiça que toma medidas para convencer os políticos que este modelo é um suicídio coletivo. É preciso pensar não só a curto prazo, mas também ao médio e longo prazo, porque neste momento o que está em risco é a soberania alimentar da Argentina. Hoje temos produtos de exportação que servem para alimentar animais de outros países, e não pessoas. Isso é vergonhoso.
Ultimamente surgiu uma movimentação de pequenos produtores que fomentam a alimentação orgânica, ainda que seja difícil ter acesso a eles e que o custo seja elevado.
Há muitas maneiras de ter acesso aos alimentos orgânicos. É uma questão de organização. Sempre falo que as alternativas existem, mas o consumidor tem um papel muito importante: tem que ser mais consciente do que está comendo e promover as hortas orgânicas, domiciliarias e comunitárias.
Esse é um movimento mundial que hoje em dia está crescendo. Na França, fomenta-se o cultivo em tetos e em terraços. Na Argentina, há um exemplo muito bom na cidade de Rosário [província de Santa Fé], mas o que vejo que aqui está em falta um Sistema de Certificação. Falam-me das feiras francas, mas a gente não sabe se efetivamente são alimentos orgânicos ou não. Por isso, é preciso trabalhar na certificação. 
Tradução: Maria Julia Gimenez
                   Assista o documentário: "O Mundo segundo a Monsanto" 
*Disponível em: