segunda-feira, 24 de julho de 2017

A Agroecologia não é, não deve e não precisa ser tudo.


Por: Francisco Roberto Caporal

20/07/2017

É lamentável, para não dizer triste, a enorme confusão que a chamada “militância técnica”[1] da Agroecologia vem fazendo ao longo do tempo. E está cada vez pior, pois a cada dia “nascem” das pedras dezenas de agroecólogos. Alguns chegam a dizer que aprenderam “na prática”, enquanto outros dizem que leram a cartilha de técnicas orgânicas. Pelo amor de Deus!

No início dos anos 2000, meu colega Costabeber (falecido) e eu, já tratávamos de advertir sobre os equívocos que vinham ocorrendo no campo da Agroecologia. Passados 17 anos, as coisas só pioraram. Por má fé ou por ignorância, a palavra Agroecologia é usada para qualquer coisa, para qualquer objetivo, por mais que este seja apenas viabilizar uma boa venda de produtos. Usar a palavra Agroecologia virou moda, como ocorreu com desenvolvimento sustentável – expressão que já não diz nada quando pretende dizer tudo. Entre os alertas que fazíamos no início dos anos 2000, era destacada a necessidade de levar-se em conta, nos processos de transição agroecológica, as seis dimensões da sustentabilidade: ambiental, econômica, social, cultural, política e ética. Caso contrário, poderíamos caminhar para agriculturas orgânicas convencionalizadas, baseadas em monoculturas e na substituição de insumos. Parece que este foi o caminho prioritário da “militância técnica”, com todos seus equívocos. 

O primeiro grande equívoco, que talvez seja a raiz de toda a confusão, foi achar que Agroecologia e agricultura sem veneno é a mesma coisa. Agricultura sem veneno pode nem mesmo ser ecológica ou orgânica. Decorre daí o passo seguinte, que foi achar que agricultor pobre, que não usa agrotóxicos porque não tem dinheiro, é, automaticamente, um agricultor agroecológico. Muitos desses agricultores foram carimbados pelas assessorias “militantes” e até passaram a se autodeclarar, equivocadamente, agroecologistas ou agricultores ecológicos. As feiras estão cheias deles. 

Este rolo conceitual se multiplica por culpa da “militância técnica agroecológica”. É ela a responsável por rotular os agricultores como agroecológicos, quando isso seria absolutamente desnecessário. Também é ela a responsável pela confusão que denomina feira agroecológica, feira orgânica ou feira ecológica, tudo como sinônimos. A “militância técnica”, não toda ela, mas aquela mal formada e mal informada cria tanta confusão que acaba confundindo a cabeça de agricultores que antes sabiam bem o que eram (tinham uma identidade) e agora devem passar a ser algo mais e incorporar algo novo na sua cultura, inclusive reproduzindo em suas falas o discurso da “militância técnica agroecológica”, que decerto achou que eles não merecem ter autonomia.

Do mesmo modo, foi a “militância técnica” que disse que famílias que receberam cisternas ou famílias que usam sementes crioulas, para citar dois de dezenas de equívocos nesta linha, são famílias que se orientam pelos princípios da Agroecologia. Não faz queimadas, é agroecologista. O mesmo vale para outras práticas de convivência com o semiárido. Na verdade, pode tratar-se apenas da adoção de práticas de convivência ou de agricultura tradicional, o que é louvável, mas que não quer dizer que isso envolva a Agroecologia. Aliás, arrisco a afirmar que a maioria das famílias que receberam as tais “tecnologias sociais” (outro invento conceitual equivocado) nunca antes haviam pensado na tal da Agroecologia, até que os “militantes técnicos” pisassem em seus terrenos ou em suas comunidades, promovendo reuniões de “difusão verde” no velho modelo extensionista. 

Aliás, fazendo um parêntesis, o difusionismo voltou com força. O que mudou foi o conteúdo. Se antes a ação dos extensionistas do estado (duramente criticada pela “militância técnica agroecológica”) era para difundir as tecnologias da revolução verde, dos agroquímicos e sementes transgênicas, agora os técnicos de OGs e de ONGs se empenham para difundir as tecnologias mais verdes, ainda que nem sempre ecológicas. Estamos vendo uma absurda “difusão agroecológica”. De todo modo é difusão, é invasão cultural, como dizia Paulo Freire. Trata-se de uma educação bancária do verde. O que é lamentável! Foram inventadas até as tais de “oficinas de concertação” ou os “intercâmbios técnicos”, para não chamar de difusão.

O que estou querendo dizer, com estes poucos exemplos, é que a Agroecologia não precisa virar moda, até porque ela não é uma moda. A Agroecologia não precisa ser TUDO e nem precisa tocar tudo para que vire ouro.

Vamos simplificar: quem não sabe o que é a Agroecologia procure se informar, trate de estudar, sair do puro empirismo e do achismo. A Agroecologia, repetimos pela enésima vez, é uma ciência e se não for entendida como tal propicia inúmeros equívocos e ações “militantes” que podem até ter boas intenções, mas que só servem para gerar mais confusões ou, no limite, para levar agricultores à ilusão de que com a Agroecologia eles vão resolver todos os seus problemas. Isso, de início, é uma mentira, uma enganação.

Por fim, mais um alerta. Paira entre nós, em especial entre a “militância técnica”, a ideia de que todos os agricultores devem empenhar-se para fazer a transição agroecológica em suas unidades de produção. Não sei de onde tiraram isso! Vejamos. Se a transição agroecológica é uma estratégia de mudança/transformação nas dimensões ambiental, econômica, social, política, cultural e ética da sustentabilidade para se avançar na direção de agriculturas mais sustentáveis, é provável que muitos agricultores/famílias e suas unidades de produção estejam mais próximos dessas condições socioambientalmente mais sustentáveis do que aquelas que possam ser alcançadas por processos de transição tecnicamente dirigidos. 

O inverso é verdadeiro. Dizer que os indígenas, quilombolas e outros grupos sociais “sempre fizeram Agroecologia” é um enorme equívoco e, inclusive, pode ser um insulto aos sues modos de vida e elementos de cultura que determinaram ou influíram nas suas decisões sobre como relacionar-se com a natureza. Muitos destes povos foram além do que hoje buscamos com a Agroecologia que é recolocar nos trilhos o processo de coevolução homem-natureza que foi rompido pela revolução industrial, pelo capitalismo e por seus tentáculos no mundo rural, através da modernização com seus pacotes técnicos da revolução verde.

Dito isso, proponho, sem querer ser arrogante, que façamos um acordo. Abandonemos a ideia de que a Agroecologia é a panaceia iniciada no século XX e que vai resolver todos os problemas dos agricultores do século XXI. Tratemos a ela simplesmente como uma ciência. Com certeza vai dar mais certo e não criaremos tanta confusão na cabeça de tanta gente. 

Para aqueles que não entenderam o que estamos tentando dizer, sugerimos que leiam outros textos disponíveis neste mesmo blog. Saudações agroecológicas!


[1] Entendemos por “militância técnica agroecológica” aqueles profissionais, de qualquer ou sem qualquer formação acadêmica que atuam como difusores de tecnologias mais verdes, de pacotes de técnicas de produção orgânica, ou, simplesmente de insumos que possam substituir os agroquímicos da agricultura convencional. Quando se faz referência, neste texto, à “militância técnica”, não estamos fazendo referência a todos os agentes de ater, de ensino e de pesquisa que atuam com agricultores, mas sim nos referimos aos voluntaristas, que mesmo sem saber o que é Agroecologia, se assumem como difusores de algo que lhes parece ser ou que ouviram dizer que é agroecológico.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

A questão da seca no Nordeste, transposição do rio São Francisco e outros temas

Entrevista com o especialista João Abner, da UFRN*

Seguem os problemas de falta de água no Nordeste...


A crise de abastecimento urbano no Nordeste Setentrional, embora tenha relações com os últimos períodos de seca que a região tem enfrentado há cinco anos, é explicada pela falta de integração do sistema de distribuição de água, diz João Abner à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.

Segundo ele, a cobertura de abastecimento de água nas cidades do Nordeste é de 92%, em condições normais, entretanto, a crise que se instala na seca é basicamente na produção por falta integração com os maiores reservatórios. “No início da década de 1960, as cidades brasileiras tinham sistemas individualizados de energia, isto é, cada cidade tinha sua fonte de energia, mas com o passar do tempo foi feita uma rede de distribuição de energia integrada. O mesmo foi feito com as estradas, com a construção de rodovias federais que integravam várias partes do país, e o mesmo foi feito nas áreas de telecomunicações e internet, mas a distribuição de água continua não sendo integrada no Nordeste. Cada cidadezinha do interior do Nordeste, da Bahia, de Pernambuco, do Ceará, tem um sistema de abastecimento de água isolado. Assim, o sistema capta água de um açude, geralmente de médio porte, o qual em geral foi construído para aquela função específica de abastecer aquela cidade; é um sistema desintegrado”, informa.

Na avaliação dele, os órgãos responsáveis pelo sistema de distribuição de água no Nordeste enfrentam problemas porque estão subordinados às políticas do governo federal. “O que favoreceu para que esses setores ficassem para trás e não buscassem a modernização gerencial do setor foi a dependência que os estados da região têm com a política do governo federal. Então, é incrível que uma companhia de água como a CAERN – Companhia de Águas e Esgotos do RN fique aguardando decisões do governo federal porque ela não tem autonomia para resolver seus problemas. (...) Atualmente, essa dependência com o governo federal está atrelada, justamente, à política da transposição do Rio São Francisco”, denuncia.

Na entrevista a seguir, João Abner apresenta um panorama da situação geral dos reservatórios do Nordeste Setentrional, comenta o funcionamento do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco na Paraíba e sugere a integração do sistema de distribuição de água via adutoras, a exemplo da experiência “bem-sucedida” de adutoras no Rio Grande do Norte.

 João Abner | Foto: Blog Apodiario

João Abner Guimarães Júnior é doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Sobre a transposição do Rio São Francisco, publicou diversos artigos, tais como A transposição do Rio São Francisco e o Rio Grande do Norte, O lobby da transposição e O mito da transposição.
Confira a entrevista.

IHU On-Line — Qual é a situação da seca no Nordeste Setentrional, dada a chuva abaixo da média na região e a seca prolongada dos últimos anos? A seca atual supera as últimas secas?

João Abner Guimarães Júnior — Com certeza a seca atual é a maior desde 1911, quando começamos a ter registros sistemáticos da ocorrência de chuvas na região. Nunca se teve um registro de seca contínuo como este dos últimos cinco anos; o maior registro era de quatro anos. A seca atinge diferentemente diversas atividades, mas a realidade das atividades agropecuárias de sequeiro, contudo, é a mais complexa e a mais difícil, porque essas atividades dependem exclusivamente da chuva. Como é o caso da pecuária extensiva e a agricultura familiar que são diretamente afetadas pela seca. Além disso, a seca gera um problema que está impactando a maior parte da população, que é a questão do abastecimento urbano. 

Atualmente estamos vivendo um processo de agudização do problema da seca no Nordeste. O que ocorre é o seguinte: como nós tivemos, no final dos cinco anos de seca, um período com chuvas na normalidade ou um pouco abaixo da normalidade, o déficit de água acumulado nos reservatórios não mudou, ao contrário, ele se manteve. Isso acontece porque quando chove acima da média os reservatórios enchem e quando chove abaixo da média os reservatórios se esvaziam, mas quando chove na média — como agora — o estado dos reservatórios se mantém. Então, estamos entrando em um processo em que quase todos os reservatórios médios e grandes do NE estão com baixo nível de armazenamento de água, e a situação de hoje é pior ou igual à que se tinha na mesma data um ano atrás, isto é, nesse sentido a seca continua. 

Portanto, estamos num estado crítico, porque a seca atingiu os reservatórios, eles secaram, e agora para recuperá-los precisamos de alguns anos ou de um ano excepcionalíssimo, com chuvas acima da média. Certamente o efeito dessa seca vai demorar uns dois ou três anos, e creio que para voltar à condição inicial temos ainda pela frente três ou quatro anos.

IHU On-Line — Quais são os reservatórios que estão em uma situação mais crítica e como isso está afetando o abastecimento urbano na região?

João Abner Guimarães Júnior — O quadro geral é de volume morto e comprometimento total dos grandes reservatórios, com exceção dos reservatórios do Rio Grande do Norte, pois a situação do RN é bem melhor e menos grave do que a de todos os outros estados do Nordeste. A segunda maior reserva de água que temos hoje noNordeste Setentrional — entre o Rio São Francisco e o Parnaíba — está no Rio Grande do Norte, é a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, que tem 450 milhões de metros cúbicos de água. E o maior reservatório dessa Região é o Açude Castanhão, no CE, que tem 6,7 bilhões de metros cúbicos de água de capacidade de armazenamento e se encontra com 350 milhões de metros cúbicos.

O Rio Grande do Norte tem a quarta maior reserva de água do Nordeste, que é a Barragem de Santa Cruz do Apodi, que está com um percentual de armazenamento de 30%, enquanto a Armando Ribeiro está com um percentual de 19%. Esses dois reservatórios, estrategicamente localizados no centro do RN, e mais dois outros do interior do estado têm água suficiente para atravessar mais dois anos de seca, mas, infelizmente, essa é uma realidade que não existe nos outros estados da Região.

Crise de gestão dos recursos hídricos

Essa crise que estamos vivenciando no Nordeste foi determinada também por uma crise na área de gestão de recursos hídricos: um problema foi se somando a outro, e isso agravou o quadro da seca. O exemplo mais claro disso é a situação do Ceará. No Ceará há muita propaganda de que o estado avançou na área de gestão dos recursos hídricos, que existe uma legislação avançada, uma boa gestão, que as mais prósperas e mais conceituadas empresas do Nordeste da área de recursos hídricos estão localizadas no estado, mas é onde a gestão dos recursos hídricos foi mais falha. O que está acontecendo hoje no Ceará é consequência da falta de gestão dos recursos hídricos.

Vou explicar melhor essa questão: o estado do Ceará tem uma norma bastante técnica e detalhada, tem um plano de recursos hídricos atualizado, ao contrário de muitos estados que nem plano têm, mas eles não colocam esse plano em prática. Na gestão dos recursos hídricos, o estado do Ceará utiliza o parâmetro Q90+, que tem como referência a vazão mínima disponível em 90% dos casos e que ocorre em média com frequência de 10 anos, o que significa que a água está disponível para todos os fins quando a disponibilidade é maior do que isso, inclusive a Lei Federal 9433 (a Lei das Águas) determina que, nessas condições, o uso múltiplo de água deve ser estimulado. Então, em condições normais se utiliza água para todos os fins, sem restrição. Entretanto, segundo a Lei Cearense, quando se instala uma situação de seca de 10 anos, com características de intensidade, o Estado deveria racionar a água para aqueles fins que são menos prioritários, como é o caso da irrigação. E se a seca se prolongar e for identificada como a maior seca dos últimos 20 anos, se deveria parar com a irrigação e preservar a água dos reservatórios para o consumo humano.

O que aconteceu no Ceará? A seca de 10 anos chegou em 2015, quando o estado do Ceará deveria ter começado a racionar água para a irrigação. Em 2016, constatado que a seca continuaria, já deveria se ter parado com a irrigação completamente; entretanto, até hoje o estado do Ceará entrega água para a irrigação a partir do seu maior reservatório. É por isso, então, que o abastecimento humano a partir do Açude do Castanhão está comprometido, e se tornou um grande problema do Ceará dado que a região metropolitana consome água do interior do estado, ou seja, uma população de 3,5 milhões de habitantes depende da água do Castanhão, que secou porque se manteve a irrigação em larga escala durante toda a seca. Parece que, só agora, no final do período chuvoso o estado vai decidir se vai ser mantida ou não a irrigação.

De outro lado, a cidade de Campina Grande, na Paraíba, a segunda em importância do estado e uma das maiores do interior do NE, se encontra a menos de 100 km de reservas de água do litoral que atenderiam perfeitamente e a um custo razoável, pelo menos, o pouco mais de 600 litros de água por segundo que vinha sendo retirado em regime de racionamento do açude Boqueirão, que se apresenta há muito tempo com baixa disponibilidade comprovada.

Portanto, nesse caso, no mínimo, houve falta de precaução com o abastecimento de água na Paraíba. Como pode a Companhia de Águas do Estado enfrentar uma seca terrível como essa sem um plano B de abastecimento de água para Campina Grande, apostando, como foi o caso, todas as suas fichas na problemática Transposição do Rio São Francisco?

Infelizmente, essas duas experiências retratam um quadro generalizado de inoperância desse setor. Entretanto, a seca está mostrando também muito mais coisas do que as pessoas enxergam.

IHU On-Line — Como o quê, por exemplo?

João Abner Guimarães Júnior — Uma crise dessa dimensão, que atinge tanta gente ao mesmo tempo, tem que ter uma explicação política. A situação crítica do abastecimento não pode ser explicada somente pela seca. O abastecimento urbano de água é um dos maiores negócios que existe no Brasil. Como é que um setor como esse, de grande importância e comprovada economicidade, se mostra tão frágil? Entretanto, essa fragilidade do abastecimento urbano não é um problema só do Nordeste, é do Brasil todo.

A resposta que dou a essa situação é a seguinte: o setor de saneamento, que enfrenta a mesma situação do abastecimento urbano, vive uma grande crise. O setor de abastecimento de água é composto por duas atividades: a parte comercial e a parte industrial. A parte comercial é a da distribuição de água, e no Nordeste a cobertura de abastecimento de água nas cidades é de 92%. Então, dada essa cobertura, qual é a crise? A crise está na área da produção de água, mas se formos ver, na prática, existe água para isso: o Ceará, o Rio Grande do Norte e até mesmo a Paraíba, com todas as suas dificuldades, têm água. Então, embora a crise da produção de água se dê por vários motivos, um deles é a falta de integração nos sistemas de produção.

Sistema de distribuição de água não integrado

No início da década de 1960, as cidades brasileiras tinham sistemas individualizados de energia, isto é, cada cidade tinha sua fonte de energia, mas com o passar do tempo foi feita uma rede de distribuição de energia integrada. O mesmo foi feito com as estradas, com a construção de rodovias federais que integravam várias partes do país, e o mesmo foi feito nas áreas de telecomunicações e internet, mas a distribuição de água continua não sendo integrada no Nordeste. Cada cidadezinha do interior do Nordeste, da Bahia, de Pernambuco, do Ceará, tem um sistema de abastecimento de água isolado. Assim, o sistema capta água de um açude, o qual em geral foi construído para aquela função específica de abastecer aquela cidade; é um sistema desintegrado. O caso do Ceará é bem emblemático porque as pequenas e médias cidades do estado não têm acesso à água das grandes barragens, elas ficam penduradas por sistemas individualizados nos açudes médios. Logo, não precisa ter uma seca de cinco anos para faltar água, basta a seca de um ano para começar a comprometer o abastecimento de água das cidades.

Qualidade da água

Isso também afeta a qualidade da água: há muito tempo a água das cidades do interior não é potável. No Rio Grande do Norte existe um grande comércio não oficial de venda de água, mesmo na época das chuvas, quando todos os reservatórios ficam cheios e a água se renova e fica com boa qualidade. Os sistemas de abastecimento e tratamento de água são adequados para água nova, mas quando a água vai ficando ruim, de baixa qualidade, o sistema de tratamento não trata a água adequadamente, e começa a haver um comércio paralelo de água. No Rio Grande do Norte existe o que chamamos de “água de Natal”, pois todas as cidades do interior recebem essa “água de Natal” mesmo na época em que os açudes têm água abundante. Isso vai criando um vício na população, o que faz com que as pessoas não valorizem mais a água da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte – CAERN. Então, cria-se um círculo vicioso:  A água da CAERN torna-se de péssima qualidade, o preço não é reajustado, e as pessoas se acostumam com essa situação e ficam, cada vez mais,  comprando água fora do sistema oficial. Assim, uma vez que a seca vai se instalando, a qualidade da água vai piorando e a necessidade de comprar água de melhor qualidade vai aumentando. Então a situação chega a um ponto em que as pessoas só usam água da CAERN para os serviços de limpeza. Esse quadro leva à situação em que estamos hoje.       

IHU On-Line – Qual é a dificuldade de desenvolver um sistema integrado de abastecimento de água no Nordeste?

João Abner Guimarães Júnior — A questão que tem levado esse sistema à falência é uma questão estrutural, que se deve à política defasada do sistema de abastecimento e saneamento de água, principalmente por conta da falta de integração e também da falta de controle e de regulação da qualidade da água. Em Natal existe uma agência reguladora que controla a qualidade da água, mas no interior ninguém faz esse controle. Mais absurdo ainda é o fato de que a tarifa da água do interior do estado é regulada pela agência reguladora do município de Natal.

Mas o problema central é político. Por que o setor de abastecimento de água ficou para trás? Ao fazer essa pergunta, não estou falando nem defendendo a privatização, porque se houvesse vontade política e compromisso público com a qualidade dos serviços, a empresa pública teria condições de realizar um bom trabalho. Entretanto, as empresas que prestam esse serviço não procuram melhorias porque são administradas como repartições públicas. E, ao contrário, como são empresas de economia mista, deveriam estar prezando pelo mercado e pela qualidade dos serviços, mas isso não existe.

O que favoreceu para que esses setores ficassem para trás e não buscassem a modernização gerencial do setor foi a dependência que os estados da região têm com a política do governo federal. Então, é incrível que uma companhia de água como a CAERN fique aguardando decisões do governo federal porque ela não tem autonomia para resolver seus problemas. Quando os problemas aparecem, ela procura uma solução através do governo federal. Essa dependência com o governo federal está hoje atrelada, justamente, à política da transposição do Rio São Francisco. Dessa forma, o próprio Ministério da Integração é solapado pelos interesses econômicos que estão atrelados à transposição e às grandes obras, e isso influencia as decisões a serem tomadas nas pequenas e médias cidades.

IHU On-Line — Por que a situação dos reservatórios e da distribuição de água do Rio Grande do Norte é melhor e diferente em relação à situação dos outros estados do Nordeste? Essa situação é explicada por conta da existência das adutoras?

João Abner Guimarães Júnior — Porque o Rio Grande do Norte tem uma experiência bem-sucedida, que começou com o maior programa de adutoras do Nordeste, inclusive com adutoras de caráter regional. Esse programa foi desenhado no final do século passado, no governo de Garibaldi Alves, em que se elaborou esse programa de integração.

O Rio Grande do Norte tem quatro mesorregiões: a litoral leste, onde está a região metropolitana de Natal e a produção da cana-de-açúcar; a região agreste, que é uma região intermediária; o sertão central; e o alto oeste. A população do RN é pequena, somos três milhões e 300 mil habitantes, e 60% da população é abastecida a partir do litoral; esse sistema abastece Natal e tem o maior sistema adutor do estado, que abastece a região agreste. Então, 60% da população do Rio Grande do Norte está atravessando essa seca sem grandes problemas. O restante da população, 40% – que envolve a região do Sertão Central, que engloba as regiões: Seridó, Sertão de Angicos e Baixo Açu –, é a que mais tem água. Portanto, Seridó, que é classificada como uma região extremamente seca, porque chove menos, está margeando uma das maiores reservas de água do Nordeste, que é a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves.

A barragem tem 450 milhões de metros cúbicos de água, mas o consumo de todas as adutoras que pegam água dessa barragem é de apenas 30 milhões de metros cúbicos por ano. Somente neste ano, a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves recebeu 120 milhões de metros cúbicos de água, mas essa mesma barragem receberá, segundo as previsões, 60 milhões de metros cúbicos de água por ano por conta da transposição do Rio São Francisco, nas condições mais otimistas. Ocorre que, hoje, do jeito que a situação está, ela já recebeu o dobro disso em um mês.

A população da maior cidade do Seridó, Caicó, finalmente enxergou que a solução é utilizar a água da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, então se construiu uma adutora em apenas três meses, que normalizou o abastecimento de água, pelo menos em níveis de oferta emergencial. Essa experiência de Caicó deverá ser copiada num plano para abastecer todas as cidades do Seridó. Felizmente, o Rio Grande do Norte tem água suficiente para atender toda a sua população.

É preciso ousar para sair do atoleiro da dependência financeira das ações emergenciais do Governo Federal. A saída é buscar a autossustentabilidade com os próprios recursos arrecadados, e no caso do RN é possível, através da implantação de uma tarifa de água de contingenciamento, que cobraria em média apenas dez reais mensais a mais, conseguir recursos financeiros para resolver, pelo menos em caráter emergencial, o abastecimento de água em todas as cidades do estado. É pouco dinheiro, já que as grandes obras já estão feitas, são pouco mais de 200 milhões de reais, mas com esse valor é possível fazer essa integração das cidades que estão com deficiência de água com as adutoras maiores.

Agora, se você me perguntar por que isso não foi feito antes, bom, não foi feito antes porque não tinha interesse político pelo Governo Federal. Há um exemplo na região que é gritante nesse sentido: existia um projeto de construção de uma grande adutora de caráter regional, a Adutora do Alto Oeste; quando esse projeto foi levado para o Governo Federal, para liberação de recursos, o Ministério da Integração alegou que se essa adutora fosse feita do modo como estava previsto, ela inviabilizaria qualquer possibilidade de a água da transposição do Rio São Francisco chegar à bacia do Rio Apodi. Logo, eles cortaram a linha tronco da adutora que levaria água à cidade de Pau dos Ferros, que se encontra a 60 quilômetros da Barragem de Santa Cruz do Apodie é a principal cidade da Região que era abastecida por uma barragem que está seca há mais de três anos. Isso tudo, apesar de o trecho quatro do Eixo Norte da Transposição, que traria água para o Rio Apodi/Mossoró, nem mesmo ter sido ainda licitado.

Entretanto, o RN finalmente parece estar tentando se libertar dessa situação de dependência com o governo federal. 

IHU On-Line — Com a construção das adutoras seria possível manter a irrigação e ainda assim garantir o abastecimento urbano?

João Abner Guimarães Júnior — É preciso, em primeiro lugar, separar essa questão do abastecimento humano da irrigação. Abastecimento humano tem que ser analisado sob o ponto de vista dos benefícios sociais, enquanto a irrigação tem que ser analisada pelo aspecto econômico. O que ocorre na prática? A lei brasileira é bastante avançada e diz o seguinte: deve haver uso mútuo da água, mas, em condições de escassez, o consumo humano deve ser prioritário. Se colocarmos em prática essa lei, teremos sustentabilidade. A questão é como fazer isso para assegurar que na época da escassez o consumo humano seja prioritário. Já existem mecanismos para isso: as outorgas de irrigação, as quais têm restrições, e são condicionadas pela questão da criticidade da seca.

Depois dessa experiência da maior seca de 100 anos, espera-se que não se deva continuar oferecendo água em larga escala para a irrigação em situações de seca prolongada como a atual. É justamente isso que tem levado a uma situação de instabilidade em relação ao consumo humano. A questão é: como todas as demais atividades econômicas que têm importância social podem estar submetidas à política de irrigação? Hoje em dia existe seguro para tudo, mas por que não existe um seguro para a falta de água na irrigação? Não se pode comprometer o abastecimento urbano das cidades com a justificativa de que é preciso manter a irrigação e os empregos relacionados à irrigação.

É possível trabalhar num ambiente onde se possa ter desenvolvimento econômico a partir da agricultura sem gerar risco de abastecimento urbano nas cidades. O setor urbano consegue cobrar entre quatro e dez reais por um metro cúbico de água. Entretanto, a água que é vendida em carro-pipa no Nordeste custa acima de vinte reais o metro cúbico. A remuneração da água da irrigação, ao contrário, é baixíssima: custa entre quatro e dez centavos o metro cúbico de água. Apesar disso, ainda se fala em desenvolver o Nordeste com a água do Rio São Francisco que custará dez vezes mais.
A transposição do Rio São Francisco e a perda na condução da água

IHU On-Line — Com tem sido a experiência de funcionamento do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco na Paraíba?

João Abner Guimarães Júnior — A primeira coisa que eu gostaria de mencionar é o caráter experimental da obra de Transposição do Rio São Francisco. É uma obra única: nunca foi feito no mundo uma obra igual a essa. Essa obra gera a perenização dos rios intermitentes. Por sorte ela começou pelo Eixo Leste, mas o ideal é aproveitar a experiência do Eixo Leste para consertar a obra no Eixo Norte.

A Agência Executiva de Gestão das Águas da Paraíba – AESA tem fornecido diariamente os dados de volume de água do Açude Boqueirão que abastece Campina Grande, e a partir dessas informações é possível acompanhar o volume de água que está chegando ao açude. A informação oficial é de que estão bombeando nove metros cúbicos por segundo da barragem Itaparica no Rio São Francisco. Desse valor, há 15% deperda na condução da água por um pouco mais de 200 quilômetros dos canais da Transposição, até a água chegar ao reservatório de Monteiro. Entretanto, no trecho subsequente de um pouco menos de 200 quilômetros de escoamento ao longo da calha natural do Rio Paraíba, de Monteiro até o açude Boqueirão, as perdas estão chegando a 50%. No total estão saindo nove metros cúbicos por segundo e estão chegando 3,5 metros cúbicos por segundo. Isso traduz perdas absurdas de cerca de 60%.

Acontece que na Paraíba se criou uma expectativa muito grande em relação à transposição, e até agora a obra mal está suprindo as necessidades de Campina Grande. Entretanto, 70% da água do projeto no futuro próximo serão destinados ao abastecimento de Pernambuco, então imagine como ficará a situação em Campina Grande quando Pernambuco começar a captar a água desses canais. Mesmo assim o discurso do desenvolvimento se mantém na PB.

Paradoxalmente, atualmente estão utilizando a água do Rio São Francisco para recuperar o volume de água do Açude Boqueirão e ainda se continua fazendo racionamento de água em Campina Grande, o que já poderia ter sido normalizado. Já que a vazão que está entrando no açude é maior do que a que está saindo, por que ainda há racionamento em Campina Grande? Se a empresa que faz a distribuição da água fosse privada, ela estaria preocupada em normalizar o sistema, porque a arrecadação iria aumentar bastante. Então, pergunto novamente, por que não se normaliza o abastecimento de água em Campina Grande? Provavelmente porque estão querendo utilizar a água para atingir o volume morto, pois quando a barragem atingir o volume morto – e aí está o maior interesse –, vão abrir a comporta da barragem para que a água do Rio São Francisco desça rio abaixo, mas ninguém sabe para que isso será feito – talvez seja para servir aos interesses de alguns que querem fazer irrigação.

Quando analisamos as obras do Eixo Norte, percebemos que a situação é muito mais preocupante, porque essa é uma obra que tem uma capacidade de vazão três vezes maior que a do Eixo Leste. No Eixo Norte, os reservatórios funcionam em um sistema de cascata, por isso, eles terão que ser enchidos de água para só então poderem verter para os reservatórios seguintes. Isso vai criar um espelho enorme e aumentará a evaporação da água. Sem falar que esses reservatórios estão localizados em áreas altas e, por conta disso, a tendência é que eles tenham grandes perdas por percolação profunda uma vez que é comum a ocorrência de fraturamento das rochas no substrato cristalino do solo da região.

Até hoje não se sabe o que vai acontecer em relação ao Eixo Norte, mas com a experiência que estamos tendo com o Eixo Leste, certamente os problemas do Eixo Norte serão muito maiores.

IHU On-Line — O senhor disse que é preciso aproveitar a experiência do Eixo Leste para corrigir o Eixo Norte. O que deveria ser feito?

João Abner Guimarães Júnior — Evitar ao máximo possível a perenização dos rios com a água da transposição. Por exemplo, estou convencido de que os canais do Eixo Leste deveriam ter avançado Paraíba adentro. Ou deveria se aproveitar que a água está chegando em Monteiro e, em vez de soltar a água no leito do Rio Paraíba, como estão fazendo, deveriam se construir adutoras de maior porte para levar essa água em maior quantidade para Campina Grande e daí distribuir para outra cidades que necessitam dessa água. Se for ver, a água que chega à Monteiro encontra-se em cota superior à da cidade de Campina Grande. Enquanto isso, essa água está descendo mais de 200 metros, perdendo energia, e depois é bombeada para chegar a Campina Grande. Esse bombeamento só deveria ser feito para regiões que comprovadamente não têm água, como é o caso da Paraíba, e quando realmente houver extrema necessidade. Então, esse é um projeto que vai ser operado somente em épocas de grande necessidade, mas ele terá um custo de manutenção permanente. Diante disso, nos perguntamos: como um projeto que vai funcionar intermitentemente terá recursos para se manter? Eu não sei. Sinceramente acho que o Eixo Norte deveria ser revisto totalmente.

Nesse momento, a partir da experiência do Eixo Leste, o Governo Federal deveria convocar especialistas para analisar o Eixo Norte antes das retomadas das obras; porque é uma irresponsabilidade continuar com ele do jeito que está. Infelizmente estamos vivendo um ambiente muito ruim no Brasil e não sei se as instituições que são responsáveis por verificar essas obras, como o TCU, estão realmente querendo verificar o que está acontecendo. É impressionante ver como os processos de mobilização política continuam existindo em defesa dessa obra; é impressionante que quanto mais problemas vão aparecendo em relação à transposição, mais a obra ganha adeptos. Existem comissões em todos os estados voltadas para defender a transposição do Rio São Francisco, mas não existe nenhuma comissão voltada para analisar a problemática da seca no Nordeste. É uma esquizofrenia muito grande.

* Publicado originalmente na Revista Unisinos, AQUI.