segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Eu pensei que o Papa era POP. Me enganei?!

Por: Francisco Roberto Caporal

Depois que li a Encíclica Laudato Sí, do Papa Francisco, divulgada em 2015, fiquei imaginando que esse seria o Papa do ambientalismo, como muitos de nós ecologistas passamos a nos referir a ele. Nas suas quase 200 páginas, a Encíclica adverte e convoca a humanidade para que juntos possamos cuidar melhor da “nossa casa comum”. O conjunto das reflexões socioecológicas que constam no documento não são propriamente novidades. O novo estava no fato de ser uma Encíclica Papal, documento utilizado pelo Vaticano para transmitir um ensinamento que o Papa que ver disseminado entre os católicos.

De fato, o texto trás uma profunda crítica ao modelo de sociedade consumista em que vivemos, ao modelo predatório de crescimento econômico que tem levado à danos já irreparáveis à biodiversidade, aos riscos enormes que já enfrentamos e que se agravarão com respeito à água potável e ao processo de privatização da água, que já está em curso, assim como uma crítica aos tecnocratas e àqueles que professam uma fé cega nas tecnologias.  

Para o interesse deste artigo, vale destacar, por exemplo, a passagem a seguir, onde meu tocaio escreve:

“131. Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que «manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus», mas ao mesmo tempo recordava que «toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir da consideração das suas consequências noutras áreas». Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição «do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria », embora dissesse também que isto não deve levar a uma «indiscriminada manipulação genética » que ignore os efeitos negativos destas intervenções.”

Não obstante, para nossa surpresa, recentemente (julho de 2017) o Vaticano resvalou na maionese, como se diz no popular. O Papa determinou recomendações sobre a Eucaristia e, através de carta endereçada aos bispos pelo Cardeal Robert Sarah, da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, foram feitas diversas advertências quanto à “qualidade” das hóstias de do vinho, que na Eucaristia se transformariam no corpo e sangue de Cristo. Segundo o Vaticano a orientação foi necessária após a hóstia e o vinho da Eucaristia começarem a ser vendidos em supermercados e até pela internet.

Mas qual foi o motivo da surpresa? Ocorre que na mesma carta o senhor Cardeal orienta aos bispos do mundo inteiro que “a eucaristia preparada com organismos geneticamente modificados pode ser considerada válida”. Isto é, a Igreja não se opõe a ingredientes transgênicos na fabricação das hóstias e na mesma linha não se oporá aos vinhos feitos de uvas transgênicas. Quer dizer, hóstia sem glúten ou falsificada, com açúcar, mel, etc., invalida a eucaristia, mas transgênico é livre. 

Ora, como pode o corpo e o sangue de Cristo serem modificados geneticamente, manipulados pela mesma ciência e tecnologia que o Papa condena na Encíclica antes mencionada. Será que o Vaticano vai colocar nas embalagens das hóstias um alerta para o fato de serem ou não transgênicas? Como fiéis, os católicos podem exigir na hora de receber a comunhão que se esclareça se estão comendo hóstias transgênicas. Não ficaria interessante esta cena, na igreja? 

- Pára a fila: quero saber se esta hóstia é transgênica ou não... 

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Mercados de Proximidade: Circuitos Curtos de Comercialização


Por: Francisco Roberto Caporal
Recife, 30 de maio de 2018.

A mobilização dos caminhoneiros e empresas de transporte de cargas nos deixa muitos ensinamentos, entre os quais destacamos aqui a questão da produção e do abastecimento de alimentos.
 
Faz muito tempo que nós do campo da Agroecologia estamos insistindo sobre a importância dos Circuitos Curtos de Comercialização (CCC) por serem uma estratégia mais adequada do ponto de vista ambiental e, também, porque contribuem para assegurar melhores qualidades nutricionais dos alimentos, entre outros aspectos positivos.

Como todos sabemos quanto mais distância percorre um alimento, menos sustentável ele será, uma vez que o transporte implica em elevado consumo de matéria e energia (diesel, caminhões, etc). Há estudos mostrando que alimentos produzidos ecologicamente ou os chamados produtos orgânicos, que são comercializados a longas distâncias, podem ser menos sustentáveis do ponto de vista ambiental do que alimentos produzidos de forma convencional e comercializados em distâncias curtas. Esses alimentos orgânicos podem ser muito ecológicos dentro da porteira, dentro da unidade de produção, mas são menos sustentáveis quando estudados a partir de uma análise do metabolismo social do complexo agroalimentar do qual fazem parte.

Pode parecer paradoxal, mas é verdade. Não basta produzir ecologicamente, é preciso que se estabeleçam cadeias de comercialização que aproximem a produção do consumo, para que se alcance maiores níveis de sustentabilidade socioambiental. Quanto mais próximos estiverem os lugares de produção dos lugares de consumo mais sustentabilidade alcançaremos.

Vejam que não estamos discutindo as qualidades intrínsecas dos alimentos ecológicos. É óbvio que são melhores para nossa saúde e é óbvio que sendo produzidos sem a utilização de agrotóxicos, sem fertilizantes químicos e sem sementes transgênicas também serão mais amigáveis em relação ao meio ambiente. Sobre isso, se pensamos de forma egoísta, não importa de onde vêm os alimentos orgânicos que compramos, importa que tenhamos acesso a eles. Não obstante, se pensamos como uma sociedade que quer ser mais sustentável, então a questão da distância entre produção e consumo assume uma destacada importância.

Pois aí vem uma lição que pode ser retirada da mobilização dos caminhoneiros. Assistindo ou ouvindo os noticiários nestes dias tumultuados da paralização dos transportes de cargas, chamou atenção que muitas das reclamações sobre desabastecimento de alimentos estavam relacionadas com as grandes distâncias. Em tempos de calmaria ninguém se dá conta, mas quando temos um problema de transportes logo compreendemos, por exemplo, que não é racional levar melões e mamão do nordeste para abastecer as CEASAs de São Paulo, Rio de Janeiro ou Porto Alegre. 

Tampouco é racional que os sistemas de produção animal e as enormes plantas dos frigoríficos estejam concentrados em alguns poucos lugares do Brasil. Isso é racional apenas do ponto de vista do lucro dos produtores e empresários que participam destas cadeias, mas não é racional nem do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, nem do ponto de vista da segurança alimentar e, muito menos, do ponto de vista da qualidade dos alimentos.

Aliás, sobre isso, já em 1973, o economista britânico nascido na Alemanha E. F. Schumacher, em seu livro “Small is beautiful” (traduzido e editado no Brasil com o título “O Negócio é ser pequeno”), já alertava que os pequenos negócios, seja em qual for o setor da economia, são socioambientalmente mais amigáveis do que as grandes extensões, as grandes produções intensivas e os grandes conglomerados industriais ou de prestação de serviços, etc.

Neste sentido, quando escutamos os representantes da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) alertando para o risco ambiental que poderia advir da mortalidade de milhões e milhões de galinhas, isso não é mais que parte do risco assumido ao se estabelecer modelos de produção intensivos, extremamente concentrados e que só estão preocupados com o lucro, com a racionalidade econômica. Portanto, a morte de milhões de galinhas em situações excepcionais é uma parte inerente ao modelo intensivo de produção que não tem como resolver-se diante de imprevistos como a atual paralização dos transportes. O normal para o modelo seria que os produtores recebessem a ração diariamente ou semanalmente, mas se isso não ocorre, é óbvio que o negócio está em risco. Mas ninguém fala desta parte do problema. Nem os representantes do setor, nem qualquer dos meios de comunicação tradicionais que cobriram a situação. E o pior é que o risco, neste caso, não é só dos proprietários destes milhões de galinhas. Nestes momentos os riscos passam a ser de todos nós, são riscos da sociedade, pois esta possível mortalidade causará danos ao meio ambiente, contaminação de águas superficiais, de lençóis freáticos, de solos e muito mais.
     
     Portanto, a greve do setor de transportes de cargas nos deixa algumas lições. Para o que interessa neste espaço, destacamos: 
    1)  Sistemas de produção intensivos, baseados apenas na racionalidade econômica e no lucro, são de alto risco para a sociedade. 
    2) Sistemas agroalimentares baseados em circuitos longos de comercialização, além de serem insustentáveis do ponto de vista ambiental, são mais arriscados do ponto de vista da segurança alimentar.

Sem aprofundar mais no assunto, deixamos esta breve reflexão para que nossos leitores tirem suas próprias conclusões. Lembramos, entretanto, que a alimentação é um ato político e deve ser uma decisão nossa. Podemos optar por apoiar os modelos intensivos e contaminadores de produção e os Circuitos Longos de Comercialização, deixando tudo como está, ou optamos pelo consumo de proximidade, pelos Circuitos Curtos de Comercialização.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Morte ao desenvolvimento sustentável



Por: Francisco Roberto Caporal

Temos insistido com nossos alunos que desenvolvimento ambientalmente sustentável não existe, é uma ficção inventada por tecnocratas. Tanto desenvolvimento como sustentabilidade são coisas relativas, não estáticas. Não são absolutas. Não há “O” desenvolvimento, nem há “A” sustentabilidade. Ademais, o desenvolvimento entendido como crescimento ilimitado da economia (não é o que os governos buscam = aumentar sempre o PIB) não é compatível com o que se busca com a sustentabilidade. Quando eu falo de sustentável, estou tomando como referência algo que não é sustentável. Quando eu evoco a palavra desenvolvimento tomo como referência o que eu considero como subdesenvolvimento. Assim, quando o presidente Truman usou pela primeira vez a palavra subdesenvolvidos (se referindo a nós, povos do Sul) ele tomava como referência o seu país como um exemplo de desenvolvimento. 

Muito menos podemos ter como referência o Desenvolvimento Sustentável das organizações internacionais, da ONU, do Banco Mundial, etc, que insistem em focar suas estratégias no contínuo crescimento econômico, como a condição indispensável para resolver os problemas socioambientais. Assim, se é certo que o crescimento econômico é necessário em certas sociedades, também é certo de que não é necessário para todas. Ademais, como conceito, o DS foi esvaziado, primeiro por ter sido abandonada a ênfase original para a solução das desigualdades sociais, chegando à Rio+20, em 2012, com uma noção absolutamente mercantil. Lançou-se a noção de “economia verde”, como se fosse possível um capitalismo verde comandado pelo mercado. 

Como lembram alguns “objetores do crescimento”, “a tese do crescimento verde é uma falácia...pois não existe uma combinação que permita aumentar a quantidade de produção (o PIB) melhorando a qualidade ambiental, de modo a fazê-la compatível com os equilíbrios naturais.” É nesta perspectiva que aparece a famosa citação, atribuída a Boulding, que diz que “Quem acredita que um crescimento exponencial pode continuar indefinidamente em um mundo finito, ou é louco ou é economista.” 

Sobre isso, já havia alertado Georgescu-Roegen em sua famosa obra A lei da entropia e o processo econômico. Para esse autor, “não pode haver dúvida alguma... de que todo o uso de recursos naturais para satisfazer necessidades não vitais leva consigo uma menor quantidade de vida no futuro.” E vai além: “desde o ponto de vista puramente material o processo econômico não faz mais do que transformar baixa entropia em lixo.” Ou, como ele explica, quanto maiores e mais potentes forem os automóveis, maior e mais contaminante será o lixo produzido. Na mesma linha, eu seu livro Prosperidade sem crescimento, Tim Jackson afirma que “as suposições simplistas de que a propensão à eficiência do capitalismo nos permitirá estabilizar o clima ou proteger-nos frente à escassez de recursos não são mais que meras ilusões. Os que promovem a desvinculação como via de escape do dilema do crescimento deveriam observar com mais cuidado as evidências históricas e a aritmética básica do crescimento.” 

Ademais, o uso oportunista da noção de desenvolvimento sustentável aparece nas falaciosas propagandas das indústrias de agrotóxicos, assim como no marketing de grandes empresas como a Petrobrás ou a Vale do Rio Doce, quando elas anunciam que suas atividades de extração de petróleo e minério são sustentáveis, o que é impossível. Nesta esteira de inconsistências do desenvolvimento sustentável ecotecnocrático, não tardariam a aparecer estratégias de novos negócios tais como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), a Aplicação Conjunta (países do leste europeu) e o Comércio de emissões de gases de efeito estufa. Como lembra Daniel Tanuro, no livro O impossível capitalismo verde, estas trampasforam úteis para os contaminadores”, pois ao contrario do que se proclama elas não servem para atender os objetivos propostos, mas sim para driblá-los “e transformá-los em fontes de lucro.” De sua análise sobre o funcionamento destes mecanismos, Tanuro conclui que “o mercado de carbono representa, assim, diga-se de passagem, um novo mercado especulativo gerador de bolhas financeiras.” 

Diante de tudo isso, os especialistas não cansam de alertar que a problemática socioambiental só piorou desde a Conferência sobre Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972. É o nosso caso, no Brasil. De lá para cá, perdemos partes importantes de nossos biomas, acelerando a destruição da Amazônia, do Cerrado, da Mata Atlântica, do Pantanal e até do frágil Pampa, onde os campos estão dando lugar a imensos monocultivos de eucaliptos. Enquanto isso, o famoso tripé das dimensões da sustentabilidade, muito presente nos discursos (dimensão econômica, dimensão ecológica e dimensão social), tem servido apenas para que os ecotecnocratas mantenham-se em seus postos de trabalho e continuem elaborando papers sobre sustentabilidade e escrevendo seus projetos mirabolantes de desenvolvimento sustentável, sem nenhuma eficácia na vida real das pessoas da cidade ou do campo.

Dentro deste quadro de agravamento da crise civilizatória em que estamos imersos, nossa agricultura, em que pese a sua fama, é o setor que mais emite gases de efeito estufa no Brasil. Para “enfrentar o problema” a principal política do governo é oferecer financiamento para que os agricultores apliquem a ABC – Agricultura de Baixo Carbono, que segundo especialistas, sua implementação tem sido um fracasso, dada a baixa adesão dos agricultores. Mesmo que fosse aplicada, trata-se de uma tentativa de mudar para não mudar nada, pois o modelo da ABC é apenas um paliativo ou, como alguns ecotecnocratas chamam, uma medida de mitigação (palavra bonita, da moda, mas que não aumenta a resiliência dos sistemas agropecuários baseados nos monocultivos, na química e na hipermecanização). 

A ideia de uma ampla transição agroecológica sequer passa pela cabeça da tecnocracia nacional. É algo impensável. Ainda que já faça parte, tímida, das agendas da ONU, da FAO, da UNCTAD, do IAASTD (Avaliação Internacional sobre Ciência Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento), de 2008.

Aliás, é bom que se diga, que a FAO, em 2007 e a UNCTAD, em 2010, já haviam recomendado a substituição da agricultura convencional agroquímica por agriculturas ecológicas. Entretanto, estas instituições não fizeram nada para dar consequência a suas recomendações. Pelo contrário, a FAO, por ocasião da Rio+20, divulgou um documento sobre “agricultura verde”, semelhante ao que já havia sugerido em 1994 – a velha noção de “intensificação verde”. Essas entidades dão voltas, mas não enfrentam o problema pela raiz. 

Por outro lado, em um Informe de 2010, Oliver de Shutter, Relator Especial sobre Direito à Alimentação, da ONU, afirmava que a segurança alimentar só se alcançará com uma agricultura de base ecológica, sugerindo a necessidade de uma mudança de paradigma, reforçando a Agroecologia como um caminho inexorável.

O problema é que o desenvolvimento sustentável ecotecnocrático ficou tão forte nos discursos, que deixa uma miragem de que estamos caminhando para a solução dos problemas ambientais, da fome, da miséria, da ampla destruição da biodiversidade. Na mesma medida, os gerenciadores do DS fogem de questões básicas como, a distribuição da riqueza, da terra e a equidade de acesso aos recursos dos territórios ou mesmo aos alimentos.

Talvez esteja na hora de matar o desenvolvimento sustentável e, quem sabe, colocar ênfase no ecodesenvolvimento de Maurice Strong e Ignacy Sachs. Pelo menos, nas noções básicas de ecodesenvolvimento vamos encontrar algumas qualidades e valores que começariam a mudar o quadro atual, como por exemplo: a) um claro compromisso com as gerações futuras, estabelecendo-se uma solidariedade diacrônica sem deixar de fortalecer laços de solidariedade entre as gerações atuais; b) a necessidade de respeito às diferenças culturais, étnicas, sociais, de gênero; c) a adequação da agricultura às condições dos ecossistemas ou agroecossistemas; d) uma menor “adoração” pela tecnologia, sugerindo um pluralismo metodológico e tecnológico, o que inclui o saber dos camponeses; e) dar prioridade para a diversidade, ao contrario da “monocultura da mente” que domina o modelo atual e que se reproduz no modelo convencional da revolução verde; f) respeitar a especificidade de cada bioma; g) estimular o desenvolvimento endógeno, com suas capacidades humanas e potenciais ecossistêmicos; h) apostar nas atividades de pequeno porte, por serem mais amigáveis com respeito ao meio ambiente; i) uma menor idolatria ao crescimento infinito, etc.

Essas proposições se aproximam muito das bases epistemológicas da Agroecologia e contribuiriam bastante para reparar o curso alterado da coevolução homem-natureza, como recomenda Eduardo Sevilla Guzmán.

Certamente que apenas isso não basta. É preciso adotar outras medidas necessárias para a construção de uma sociedade mais sustentável, entre as quais aquelas sugeridas pelos “teóricos” do Decrescimento. Até lá, o que parece certo é que devemos abandonar o conceito de desenvolvimento sustentável ecotecnocrático, pois ele gera uma miragem que nos engana a todos.