Gervásio Paulus ¹
(Dedico este texto ao querido colega, amigo e mestre José
Antonio Costabeber [in memorian], com quem pude aprender muito, em particular
sobre os conceitos de Agroecologia e Transição Agroecológica. Aprendi,
sobretudo, com a sua convivência, a importância de exercitar “a prática de
pensar a prática”)
Diz um ditado chinês que a sabedoria começa pelo nome
correto das coisas. Muitas vezes, trocar o nome de algo ou de alguém é fonte de
confusão. E o risco maior que existe quando se dá um nome errado para alguma coisa
é consagrar um equívoco. Assim, por exemplo, a palavra microbacia passou a ser
entendida por muitos, inclusive por técnicos da área agronômica, como sinônimo
de práticas de conservação do solo e da água ou, mais estritamente, de
terraceamento. Expressões como fazer microbacias, tornaram-se comuns, como se
isso de fato fosse possível, como se elas já não existissem há milhares ou
milhões de anos, desde a conformação do relevo que delineou os divisores de
água e a confluência desta para um mesmo curso de vazão.
Com a palavra Agroecologia corre-se o mesmo risco, quando
esta é confundida (ainda que com uma intenção meritória, no caso estimular a
promoção de formas mais sustentáveis de produção) com um estilo particular de
agricultura, mais freqüentemente com a orgânica. Ocorre que estes estilos de
agricultura, qualquer seja a sua denominação (orgânica, biológica, biodinâmica,
etc., conforme os matizes que lhes conferem seus precursores), pressupõe um
conjunto de normas e procedimentos mais ou menos definidos. A Agroecologia, por
sua vez, não se confunde com nenhuma dessas correntes em particular, mas
expressa um campo de conhecimentos científicos que oferece um conjunto de
princípios e metodologias para o manejo ecológico dos agroecossistemas que não
devem ser confundidos com determinadas práticas ou normas de produção (da mesma
maneira que não se deve confundir microbacia com terraço, como dito acima). Já
foi dito que vivemos uma época de mudança, mas mais do que isso, vivemos uma
mudança de época. Estamos realmente precisando de mudanças. E estas serão tão
mais profundas, quanto mais refletirem a postura de seres sencientes que somos.
Precisamos de mudanças estruturais, mas o maior desafio é o pensamento
sistêmico. É por isso que afirmamos que a Agroecologia é uma “ciência no campo
da complexidade” (Caporal, Costabeber e Paulus, 2009). Nessa perspectiva, a
Agroecologia, mais do que simplesmente tratar sobre o manejo ecologicamente
responsável dos recursos naturais, situa-se em um campo do conhecimento
científico no âmbito do que Morin (1999) identifica como sendo do “pensar
complexo” (em que complexus significa aquilo que é tecido junto).
Por essas razões, agricultura convencional e Agroecologia
são incomparáveis. Em outras palavras, não se pode comparar quilos com metros,
da mesma sorte que não é correto comparar, por exemplo, a Medicina com o efeito
de determinado tratamento ou terapia, ou ainda atribuir a poluição da água ou
do ar à Ecologia... Podemos, isto sim, nesse último exemplo, dizer que a falta
de conhecimento ecológico (interdependência, interações entre organismos,
ciclos biogeoquímicos, etc.) ou a desconsideração deste por interesses de ordem
econômica é que resultaram no problema da poluição... Assim, não faz sentido
atribuir à Agroecologia a culpa por este ou aquele problema agronômico e, muito
menos, a um fenômeno mercadológico que impõe a oscilação dos preços de um
determinado produto agrícola, seja ele produzido de forma certificada ou não.
Entendendo que as diferentes formas de agri-culturas
resultam da coevolução do ser humano e do ambiente, propõe-se abordagem
metodológica que inclui a valorização e o resgate do saber tradicional, isto é,
que foi historicamente forjado ao longo de gerações, através da observação e da
relação direta com a natureza. Ademais, assume-se que a sustentabilidade, como
um objetivo estratégico a ser alcançado, deve ser entendida em uma perspectiva
multidimensional (social, econômica, ambiental, ética, política e cultural).
Nesse sentido, podemos inclusive ter uma agricultura orgânica convencional,
baseada em monocultivos orgânicos e orientada exclusivamente para um nicho de
mercado, por exemplo, o que significa, a rigor, a erosão dos princípios
agroecológicos...
Gostaríamos de não precisar falar em transição
agroecológica. E, de fato, concordamos que em muitas situações não se justifica
o uso desse conceito, como é o caso das agriculturas tradicionais indígenas e
dos pecuaristas familiares. Mas se o fazemos é porque a agricultura dita
convencional é ainda amplamente hegemônica, e é necessário avançar nas formas
de manejo em direção a agroecossistemas mais sustentáveis. Ninguém ignora, por
exemplo, o uso intensivo de agrotóxicos no Brasil e nos sistemas produtivos,
não apenas de grãos, mas também de hortaliças (termo que inclui frutas,
olerícolas e flores). Sem falar nos problemas que se manifestam em sistemas
intensivos de produção animal. Em um esforço de síntese, Costabeber (1998), diz
que
A transição agroecológica refere-se a um processo gradual de
mudança, através do tempo, nas formas de manejo dos agroecossistemas, tendo-se
como meta a passagem de um modelo agroquímico de produção para outro modelo ou
estilos de agricultura que incorporem princípios, métodos e tecnologias de base
ecológica. (...). Refere-se a um processo de evolução contínua, multilinear, e
crescente no tempo, sem ter um momento final determinado. (Grifos meus, GP)
Não se espere, portanto, que a Agroecologia ofereça um
pacote tecnológico, no melhor estilo do que ocorreu no auge da Revolução Verde.
Nesse sentido, Caporal (2017), em um texto curto no qual defende o enfoque
científico do conceito de Agroecologia, muito embora não faça nenhuma
referência ao caráter multidisciplinar dessa ciência ou disciplina científica,
tampouco às múltiplas dimensões da sustentabilidade (talvez por considerar que
esses aspectos já estivessem suficientemente abordados – e entendidos! – em
textos anteriores, nos quais tais pontos foram desenvolvidos), faz uma crítica
certeira ao discurso de que é preciso retomar a “velha e boa” extensão rural,
ao afirmar que “o difusionismo voltou com força”, ainda que disfarçado de
“‘difusão verde’ no velho modelo extensionista”. Em vez disso, o desafio que se
coloca para a pesquisa, extensão e produtores, como já dissemos em um texto
escrito 1993 (mimeografado, disponível na Biblioteca Central da Emater-RS) é o
de construir conhecimentos, que deverão ser aplicados de acordo com a realidade
de cada região. Isso significa construir, de forma participativa, contextos de
sustentabilidade. Em outras palavras, é necessário traduzir, local ou
regionalmente, princípios agroecológicos em formas tecnológicas específicas.
Vale lembrar que princípio, como bem definiu um agricultor, é onde tudo começa.
¹Engenheiro Agrônomo, Mestrado em Agroecossistemas. Extensionista Rural da EMATER-RS.
E-mail: gpaulus@emater.tche.br
Referências Bibliográficas
1. CAPORAL, Francisco Roberto (org.); COSTABEBER, José
Antônio e PAULUS, Gervásio. Agroecologia: uma ciência do campo da complexidade.
Brasília, 2009: 111p.
2. CAPORAL, Francisco Roberto. A Agroecologia não é, não
deve e não precisa ser tudo. 2017, 03p.
3. COSTABEBER, J. A. Acción colectiva y procesos de
transición agroecológica en Rio Grande do Sul, Brasil. Córdoba, 1998. 422p.
(Tese de Doutorado).
4. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. São Paulo:
Bertrand Brasil, 1999.
5. PAULUS, Gervásio. Agroecologia: rumo a um desenvolvimento
rural sustentável. (Mimeo), 1993. 10p.