Esther Vivas*
Calcula-se que a
população mundial, em 2050, chegará aos 9,6 bilhões de habitantes, segundo um
relatório das Nações Unidas. O que significa 2,4 bilhões a mais de bocas para
alimentar. Diante destes números, existe um discurso oficial que afirma que
para dar de comer para tantas pessoas é imprescindível produzir mais. No
entanto, é necessário nos perguntarmos: Hoje, falta comida? Cultiva-se o
bastante para toda a humanidade?Atualmente, no mundo, “são produzidos alimentos
suficientes para dar de comer para até 12 bilhões de pessoas, segundo dados da
FAO”, afirmava Jean Ziegler, relator especial das Nações Unidas para o direito
à alimentação, entre os anos 2000 e 2008. E recordemos que o planeta é habitado
por 7 bilhões. Sem contar que todo dia é jogada 1,3 bilhão de tonelada de
comida, em escala mundial, um terço do total que se produz, conforme um estudo
da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Segundo estes dados, comida não falta.
Os números
demonstram que o problema da fome não é por causa da escassez de alimentos,
apesar de alguns se empenharem em afirmar totalmente o contrário. O próprio
Jean Ziegler dizia: “As causas da fome são provocadas pelo homem. Trata-se de
um problema de acesso, não de superpopulação”. Em definitivo, é uma questão de
falta de democracia nas políticas agrícolas e alimentar. De fato, na
atualidade, estima-se que quase uma em cada oito pessoas no mundo passa fome,
de acordo com os dados da FAO. A aberração da fome atual é que ocorre em um
planeta da abundância de comida.
Então, por que há
fome? Por que muitas pessoas não podem pagar o preço cada dia mais caro dos
alimentos, seja aqui ou em países do Sul. Os alimentos se tornaram uma
mercadoria e se você não pode pagar por ela, preferem jogar a dar para comer.
Do mesmo modo, os cereais não são produzidos apenas para alimentar as pessoas,
mas também os carros, como os agrocombustíveis, e os animais, criação que
necessita de muito mais energia e de recursos naturais do que se, com esses
cereais, a pessoas forem alimentadas diretamente. Produz-se comida, mas uma
grande quantidade dela não vai para o nosso estômago. O sistema de produção,
distribuição e consumo de alimentos está organizado unicamente para dar
dinheiro para aquelas empresas do agronegócio, que monopolizam do início ao fim
a cadeia agroalimentar. Eis, aqui, a causa da fome.
Por conseguinte,
por que alguns continuam insistindo em que é preciso produzir mais? Por que nos
dizem que é preciso uma agricultura industrial, intensiva e transgênica que nos
permita alimentar o conjunto da população? Querem nos fazer acreditar que as
causas da fome serão a solução, mas isto é falso. Mais agricultura industrial,
mais agricultura transgênica, como já se demonstrou, significam mais fome.
Existe muita coisa em jogo, quando falamos de comida. As grandes empresas do
setor sabem muito bem disso. Daí que o discurso hegemônico, dominante, diz-nos
que elas têm a solução para a fome mundial, quando na realidade são aquelas,
com suas políticas, que a provocam.
Outro paradigma
agroalimentar
Diante do que
vimos, o que podemos fazer? Quais alternativas há? Se todos nós queremos comer
e comer bem, é necessário apostar por outro modelo de alimentação e
agricultura. Antes, afirmávamos que agora há comida suficiente para todos. Isto
é assim, com uma dieta diferente, com muito menos consumo de carne do que a
dieta ocidental atual.
Nossa “adição” à
carne faz com que precisemos de muito mais água, cereais e energia para
produzir comida, para engordar o gado, do que se nossa dieta fosse mais
vegetariana. Calcula-se, segundo o Atlas da Carne, que 1/3 das terras de
cultivo e 40% da produção de cereais no mundo são destinadas para alimentá-los.
Tornar compatível a vida humana com os limites e recursos finitos do planeta
terra também passa pelo questionamento do que comemos.
Além disso, outro
tema se apresenta, caso se proponha prescindir de uma produção de alimentos
industrial, intensiva, transgênica, que alternativa temos? A agricultura
camponesa e ecológica pode alimentar o mundo? Cada vez são mais as vozes que
dizem “sim”.
Uma das mais
reconhecidas é a de Olivier de Schutter, relator especial das Nações Unidas
para o direito à alimentação, entre os anos 2008 e 2014, que afirmava em seu
relatório, “A agroecologia e o direito à alimentação”, apresentado em março de
2011, que “os pequenos agricultores poderiam duplicar a produção de alimentos
em uma década, caso utilizassem métodos produtivos ecológicos” e acrescenta:
“faz-se imperioso adotar a agroecologia para colocar fim à crise alimentar e
ajudar a enfrentar os desafios relacionados com a pobreza e a mudança
climática”.
Segundo De
Schutter, a agricultura camponesa e ecológica é mais produtiva e eficiente e
garante melhor a segurança alimentar das pessoas do que a agricultura
industrial: “A evidência científica demonstra que a agroecologia supera o uso
dos fertilizantes químicos no fomento da produção de alimentos, sobretudo nos
entornos desfavoráveis onde vivem os mais pobres”. O relatório “A agroecologia
e o direito à alimentação”, a partir da sistematização de dados de vários
estudos de campo, deixava claro: “Em diversas regiões, desenvolveram-se e foi
provado com excelentes resultados técnicas muito variadas, baseadas na
perspectiva agroecológica. (...) Tais técnicas, que conservam recursos e
utilizam poucos insumos externos, tem um potencial comprovado para melhorar
significativamente os rendimentos”.
Um dos principais
estudos, dirigido por Jules Pretty, e citado neste relatório da ONU, analisava
o impacto da agricultura sustentável, ecológica e camponesa em 286 projetos de
57 países pobres, em um total de 37 milhões de hectares (3% da superfície
cultivada em países em desenvolvimento), e suas conclusões não deixam dúvidas:
a produtividade destas terras, graças à agroecologia, aumentou em 79% e a
produção média de alimentos cresceu em 1,7 toneladas anuais (até 73%).
Posteriormente, a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e
Desenvolvimento e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)
tomaram de novo estes dados para analisar o impacto da agricultura ecológica e
camponesa, especificamente nos países africanos. Os resultados ainda foram
melhores: o aumento médio das colheitas nos projetos na África foi de 116% e na
África Oriental de 128%. Outros estudos científicos, citados no relatório “A
agroecologia e o direito à alimentação”, chegavam às mesmas conclusões.
Além disso, a
agricultura ecológica e camponesa não apenas é altamente produtiva, inclusive
mais do que a agricultura industrial, especialmente nos países empobrecidos,
mas, como afirmavam os estudos anteriormente citados, também cuida dos
ecossistemas, permite “conter e inverter a tendência na perda de espécies e a
erosão genética” e aumenta a resiliência à mudança climática. Como também dá
maior autonomia ao campesinato. “Ao melhorar a fertilidade da produção
agrícola, a agroecologia reduz a dependência dos agricultores dos insumos
externos e das subvenções estatais”.
Mais apoios
Outro importante
relatório que aponta nesta direção são as conclusões a que chegou um dos
principais processos intergovernamentais realizados para avaliar a eficácia das
políticas agrícolas: a Avaliação Internacional do papel do Conhecimento, da
Ciência e da Tecnologia em Desenvolvimento Agrícola (IAASTD, em suas siglas em
inglês). Uma iniciativa estimulada, em um primeiro momento, pelo Banco Mundial
e a FAO, e que contou com o seu patrocínio e de outras organizações
internacionais como o Fundo para o Meio Ambiente Mundial (FMAM), o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o PNUMA, a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização Mundial
da Saúde (OMS).
O objetivo desse
processo era avaliar o papel do conhecimento, a ciência e a tecnologia agrícola
na redução da fome e da pobreza no mundo, a melhora dos meios de subsistência
nas zonas rurais e a promoção de um desenvolvimento ambiental, social e
econômica sustentável. A avaliação, realizada entre os anos 2005 e 2007, contou
com uma direção integrada por representantes de governos, ONGs, grupos de
produtores e consumidores, entidades privadas e organizações internacionais,
com um claro equilíbrio geográfico, com a participação de 400 especialistas
mundiais para realizarem este estudo, que incluía uma avaliação mundial e cinco
de regionais.
Suas conclusões
marcaram um ponto de inflexão, já que pela primeira vez um processo
intergovernamental destas características, e patrocinado por estas instituições,
realizava uma aposta clara e firme na agricultura ecológica e destacava sua
alta produtividade. Em concreto, o relatório afirmava que “o aumento e o
fortalecimento dos conhecimentos, a ciência e a tecnologia agrícola, orientados
para as ciências agroecológicas, contribuirão para resolver questões
ambientais, ao mesmo tempo em que mantém e aumenta a produtividade”.
Desse modo,
considerava que a agricultura ecológica era uma alternativa real e viável à
agricultura industrial, que garantia melhor a segurança alimentar das pessoas e
que era capaz de reverter o negativo impacto ambiental desta última. O
relatório dizia: “A pegada ecológica da agricultura industrial já é muito
grande para ignorá-la (...). As políticas que promovem uma adoção mais rápida de
soluções de eficácia (...) para a mitigação e a adaptação à mudança climática
podem contribuir para frear ou inverter esta tendência e, ao mesmo tempo,
manter uma adequada produção de alimentos. As políticas que promovem práticas
agrícolas sustentáveis (...) estimulam uma maior inovação tecnológica, como a
agroecologia e a agricultura orgânica, para aliviar a pobreza e melhorar a
segurança alimentar”.
Os resultados da
IAASTD consideravam, igualmente, a agricultura industrial e intensiva como
geradora de “desigualdades”, acusavam-na pelo “manejo insustentável do solo ou
da água” e de práticas baseadas na “exploração trabalhista”. A avaliação
concluía que “as variedades de cultivos de alto rendimento, os produtos
agroquímicos e a mecanização beneficiaram principalmente aos grupos dotados de
maiores recursos da sociedade e corporações transnacionais, e não aos mais
vulneráveis”. Algumas afirmações inéditas, até o momento, no panorama
internacional, por parte de instituições e governos.
Este relatório, com
estas conclusões, foi aprovado pelas autoridades de 58 países em uma assembleia
plenária intergovernamental, em abril de 2008, em Johanesburgo, em que
mostraram acordo e avaliaram os resultados. Os Estados Unidos, Canadá e
Austrália, como não é surpresa para ninguém, negaram-se a subscrever esta
avaliação e mostraram reservas e desconformidades à totalidade.
Conclusão
Os relatórios de
Olivier de Schutter, relator especial das Nações Unidas para o direito à
alimentação, e da IAASTD destacam, sem ambiguidades, a alta capacidade
produtiva da agricultura camponesa e ecológica, igual ou superior, dependendo
do contexto, à agricultura industrial. Ao mesmo tempo, consideram que esta
permite um maior acesso aos alimentos, por parte das pessoas, ao apostar em uma
produção e uma comercialização local. Além disso, com suas práticas respeita,
conserva e mantém a natureza. O "mantra" de que a agricultura
industrial é a mais produtiva e de que é a única que pode dar de comer à
humanidade demonstra-se, com base nestes estudos, totalmente falso.
Na realidade, a
agricultura camponesa e ecológica não só pode alimentar o mundo, como também é
a única capaz de fazer isso. Não se trata de um retorno romântico ao passado,
nem de uma ideia bucólica do campo, mas, sim, de fazer confluir os métodos
campesinos de ontem com os saberes do amanhã e de democratizar radicalmente o
sistema agroalimentar.
*Artigo publicado por Publico.es, em 20/05/2014. Tradução: CEPAT, Instituto Humanitas.
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