segunda-feira, 26 de maio de 2014

O fim do futebol arte, ou porque o Brasil não será hexacampeão

José de Souza Silva¹

O futebol é hoje o zumbi de um esporte sem alma. Navega à deriva sem rumo claro a seguir nem porto seguro onde chegar. Na forma que o conhecíamos, o futebol é um fogo fátuo que se esvai na imaginação da última geração do século XX. Morreu o futebol-espetáculo. No caminho do voraz capitalismo, tudo que é sólido se desvanece no ar e tudo que é sagrado é profanado. Chegou a hora do futebol. Após penetrar santuários dos mundos natural e cultural, o capitalismo insaciável transformou o futebol numa fonte de acumulação. Hoje o princípio reitor deste esporte é o mercado que amputou seu espírito para “fazer dinheiro” e não a alegria do povo. A Copa de 2010 parecia mais uma Eurocopa ampliada para incluir convidados especiais e a estética melódica das vozes humanas nas torcidas foi substituída pelo uníssono som metálico das irritantes vuvuzelas.

Já não se joga futebol como antes. O que importa é o resultado independente da forma de alcançá-lo. O drible já não é o protagonista do jogo; o número de faltas supera o número de joga-das bonitas. A habilidade já não é o único critério para contratar jogadores, que agora devem ser mais altos e mais fortes para jogar o jogo duro do futebol-de-resultados. Hoje, sem espetáculo, a violência aumenta entre torcidas insatisfeitas. Já não vamos ao estádio curtir o desempenho de nossa equipe, mas ver estrelas de brilho efêmero desfilar no campo sem vínculo com seu grupo. Estas estrelas brilham mais em anúncios publicitários pousando de cueca para anúncios de televi-são. Na Copa de 2010, Cristiano Ronaldo se olhava no telão do estádio enquanto corria perdido como se nunca tivesse jogado futebol. No futebol-arte, o brilho autêntico de jogadores-artistas (Pelé, Maradona) os acompanhava ao longo de suas carreiras e não perdiam sua aura após parar de jogar. Jogavam para a alegria do povo, como Garrincha. Hoje, estrelas artificiais raramente brilham por vários anos e alguns perdem sua aura em plena carreira, como David Beckham.

Sob a pressão de um indecente salário altíssimo e contratos publicitários multimilionários, o jogador de brilho fugaz não joga bem para seu país; reserva seu bom desempenho para seu clube-corporação. Na África do Sul, essas estrelas voltaram a seus clubes sem fazer um único gol por seus países, como Cristiano Ronaldo, Kaká, Rooney, Cannavaro e Ribery, ex-melhores jogadores do mundo, inclusive Messi, melhor jogador do mundo daquele ano. Isso nos faz imaginar: o que significa ser o melhor jogador no futebol-eficiência? Para diminuir a frustração coletiva das sociedades de origem desses jogadores, os que transmitem a Eurocopa fazem um esforço patético para criar a ilusão de que os jogadores-mercadorias no exterior ainda são “nacionais”. Por exemplo, no caso do Brasil, eles gritam: “gooooooool do brasileiro Neymar”; porém, quando o mesmo jogador está jogando em nossa seleção, eles gritam: “gooooooool de Neymar, do Barcelona”.

A humanidade assiste o ocaso do futebol como fenômeno social e o alvorecer do futebol como negócio transnacional. A Copa de 1970 no México foi o apogeu do futebol-espetáculo cuja história é marcada pelo desempenho de equipes nacionais com resultados alcançados com a graça de dribles individuais e lindas jogadas coletivas próprias do futebol-de-equipe. Era o mais belo espetáculo deste esporte. Ainda com um resultado 0x0, na maioria das vezes as torcidas saiam do campo satisfeitas com o espetáculo. Em 2010, a melhor partida da Copa não foi a última, onde brilharam doze cartões amarelos e um vermelho, e a jogada gravada na memória dos telespectadores não inclui a bola. Foi o chute de Kickboxing do holandês De Jong no peito do espanhol Xabi Alonso, quem emulou o grotesco gesto do francês Zindane em 2006, que surpreendeu o mundo ao despedir-se de seu futebol-arte com uma patética cabeçada no peito do italiano Materazzi.

João Avelange, Presidente da FIFA por 24 anos, foi o estrategista da penetração do capitalismo no futebol com apoio em países como o Brasil onde o cúmplice foi seu genro Ricardo Teixeira, Presidente da CBF por mais de 20 anos. A corrupção foi usada para minar o futebol-espetáculo e engendrar o futebol-eficiência. Desde os anos 80, o futebol-arte foi fria e sistematicamente minado, enquanto o futebol-comercial foi deliberada e cuidadosamente cultivado como um negócio global lucrativo. Por isso, a fonte de motivação para jovens talentos brasileiros já não é sua sociedade, mas um contrato em Euros, nem sequer em Dólares. No Brasil, chegar à seleção já não é o sonho máximo dos jovens futebolistas, mas ser contratado no exterior. O futebol foi transnacionalizado sob a lógica da mercadoria e a inevitável desnacionalização do futebol. Uns transnacionalizaram seus jogadores, como o Brasil e a Argentina, que vendem jogadores-apátridas, e outros transnacionalizaram seu futebol, como a Espanha e a Itália, que des-historializaram seu futebol. Estes países assistem à decadência de sua seleção nacional, ainda contando com muitas estrelas individuais, como o Brasil em 2006, porque não formam uma constelação. Na África do Sul, favoritos como a França e a Itália voltaram à casa sem nem sequer desfazer as malas. Quando integram suas seleções, as estrelas do futebol-eficiência jogam para serem vistos e avaliados pelos dirigentes e acionistas de seus clubes, não para as torcidas de suas sociedades.

O futebol-comercial é viabilizado pelo jogador-commodity premiado por sua ambição individual e não por seu desempenho na equipe. Frente a vários adversários no campo contrário, muitos preferem perder a bola tentando fazer um gol impossível do que passá-la para outro melhor posicionado. Obcecado com sua contribuição ao resultado da partida, e não com o desempenho da equipe, o jogador-apátrida privilegia a falta - sobre o drible - para assegurar o resultado para seu clube e não para sua equipe. Se o jogador-mercadoria avança com a bola e lhe falta habilidade para driblar o adversário, o derruba; se um adversário avança com a bola e o jogador-mercadoria não tem habilidade para roubá-la, o derruba, e, às vezes, o pisa, como fez Felipe Melo com Arjen Robben da Holanda em 2010. Na África do Sul, na perturbadora ausência de belas jogadas, o que a televisão mostrou foi a falta como protagonista das partidas, usando o efeito especial da câmara lenta para “naturalizar” (como espetáculo) a supremacia da força sobre a habilidade.

Em países que transnacionalizaram seus jogadores, como Brasil e Argentina, a seleção é formada por jogadores-mercadorias de clubes-apátridas e novatos que anseiam ser jogadores-apátridas. Não configuram uma equipe. Competem entre si. O Brasil já não lhes emociona como fonte de motivação; é o contrato em Euros a fonte de pesadelos dos antigos, que não podem perdê-lo, e de sonhos dos novatos, que aspiram consegui-lo. Mas, sem emoção não há paixão, e sem paixão não há compromisso. Se formarem suas seleções com jogadores-apátridas, os países do futebol-arte não voltarão a ser campeões mundiais, como a Argentina não foi em 2010 com Maradona como Técnico, nem quando sejam anfitriões da Copa, como o Brasil não será hexacampeão em 2014, a menos que renacionalizem seu futebol. Na África do Sul, 19 brasileiros naturalizados em outros países jogaram sem a camisa verde-amarela, alguns dos quais jogaram contra o Brasil.


O futebol jamais será o mesmo. Mudadas pela FIFA, patrocinadora oficial do futebol comercial, as Copas futuras serão entre corporações e não entre nações, como na Fórmula-1, onde a competição é entre as escuderias e não entre os pilotos-mercadoria, que representam seus proprietários e não seus países. Há séculos, para aumentar sua riqueza material, impérios europeus colonizaram a África, América Latina e Ásia saqueando seus tesouros naturais. O processo continua. Os clubes europeus são impérios futebolísticos que saqueiam talentos nessas regiões, como a recente compra de Neymar ao Santos para aumentar o lucro dos clubes-apátridas e diminuir a chance do Brasil ser hexacampeão. Assim como o Ocidente não conquistou o mundo por ser “naturalmente” superior, também não é “natural” a superioridade do futebol europeu. Na Eurocopa, assiste-se futebol na (e não futebol da) Europa; muitas estrelas não são europeias. Refletindo a europeização do futebol força-eficiência-lucro, as primeiras Copas do século XXI antecipam a estética do futebol do futuro. O campo não será um teatro para o espetáculo criado por equipes que encantam o mundo com o ‘balé’ de seu futebol. Será uma arena comercial patrocinada por mercadores sem escrúpulos onde gladiadores impiedosos e estrelas sem encanto denigrem este esporte com faltas sem sentido e resultados alcançados sem arte. Até quando? A que custo?


¹ Pesquisador da Embrapa Algodão, Campina Grande-PB, Maio de 2014. 

Um comentário:

  1. Boa, solicito tua permissão para usar em um debate em sala de aula sobre a Copa do Mundo no Brasil. Obrigado.

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