quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O que não é Agroecologia.


Por: Francisco Roberto Caporal [1]

Já faz tempo que tentamos alertar para o uso abusivo, equivocado, maldoso, oportunista ou por má fé, do vocábulo Agroecologia. E não por acaso, mas porque vínhamos observando que estava ocorrendo uma apropriação, cooptação e uso temerário da palavra, sem levar em conta os conceitos e princípios nem, muito menos, as bases epistemológicas da Agroecologia.

Para começo de conversa, é bom registrar que Agroecologia não é tudo, nem é a salvação para todos os males. Já escrevemos em outro lugar: Agroecologia não é a panaceia salvadora para todos os problemas das sociedades. A Agroecologia não se propõe a tomar o lugar de outras ciências. Logo, há coisas que se resolvem no âmbito das ciências exatas ou naturais, assim como há coisas que se resolvem no campo da política e não são, necessariamente, do campo de estudo da Agroecologia.

Como a palavra explicita, quando falamos de Agroecologia se está tratando de algo que tem a ver com AGRO e com ECOLOGIA.

Segundo a Wikipédia, o prefixo agro tem origem no verbete latino agru que significa "terra cultivada ou cultivável". Já a palavra "agricultura" vem do latim agricultūra, composta por ager (campo, território) e cultūra (cultivo), no sentido estrito de cultivo do solo.

Por outro lado, a ecologia é a ciência que estuda o meio ambiente e os seres vivos que vivem nele, ou seja, é o estudo científico da distribuição e abundância dos seres vivos e das interações que determinam a sua distribuição. A palavra tem origem no grego “oikos” que significa casa e “logos” que significa estudo.

Visto isso, vamos adiante. Nossa intensão é tentar, da forma mais didática possível, explicar o que não é Agroecologia.

Vejamos. Muita gente usa a palavra Agroecologia para se referir a uma agricultura sem o uso de agrotóxicos e/ou fertilizantes químicos sintéticos. Ora, este tipo de agricultura pode ser resultado não da adoção/aplicação de princípios ecológicos, mas simplesmente por tratar-se da impossibilidade do uso destes insumos, por diferentes razões, inclusive pela falta de recursos financeiros para compra-los. Agricultores pobres que não usam insumos químicos não são necessariamente agroecológicos.

Também não é necessariamente agroecológica, uma agricultura em que foram substituídos os produtos químicos por insumos biológicos, naturais ou orgânicos e ponto. Neste caso poderemos estar frente ao que vem sendo tratado como “convencionalização” da agricultura orgânica ou ecológica. Isto é, se mantem a mesma lógica da agricultura industrializada da revolução verde, inclusive o modelo de monocultivos, só que neste caso sem a utilização de insumos químicos. As chamadas produções “corporgânicas”, que já existem em muitos lugares, certamente são orgânicas e certificadas, mas não são sustentáveis do ponto de vista socioambiental e muito menos agroecológicas. O mesmo ocorre na agricultura familiar, quando esta se especializa e passa a dedicar-se ao monocultivo de uma única espécie (animal ou vegetal).

Por outro lado, há os que confundem Agroecologia com “um tipo de agricultura”. Vejamos. Dadas as bases epistemológicas da Agroecologia, faz-se necessário considerar, pelo menos dois aspectos centrais: por um lado o fato de que a agricultura é uma prática social que é influída, entre outras coisas, pelos elementos de cultura, valores, normas, regras e cosmovisões dos grupos sociais que a praticam. Por outro lado, trata-se de modificar ecossistemas visando a produção de alimentos, fibras, matérias primas, etc, daí porque os agroecossistemas (ecossistemas modificados pela prática da agricultura) passam a ser primeira unidade de análise da Agroecologia (digamos: a escala de propriedade, comunidade ou território). Não obstante cada agroecossistema poderá apresentar características biofísicas, condições ecológicas que os diferenciam dos demais. Se isso é verdade, a aplicação dos princípios da Agroecologia nos levará a uma diversidade de “tipos de agriculturas” resultantes de como sejam os arranjos entre os sistemas sociais/culturais e os sistemas ecológicos de cada lugar, ou ainda, de diferentes formas de integração dos saberes locais/tradicionais com os conhecimentos científicos aplicados.

A Agroecologia não é, portanto, um tipo de agricultura, nem uma agricultura alternativa. Compreender desta forma tem levado a muita gente falar e escrever equivocadamente: “fazer a transição para a Agroecologia”. Seria o mesmo que aplicar um Teorema de Pitágoras e dizer que se está fazendo a transição para a matemática.  

De fato, a Agroecologia por ser uma transdisciplina, nos oferece um cabedal de conhecimentos de muitas disciplinas que, em diálogo com os saberes locais/tradicionais, e o uso de metodologias e tecnologias apropriadas, contribuirá para o desenho de agroecossistemas ou de sistemas agroalimentares mais sustentáveis do ponto de vista socioambiental, culturalmente mais aceitáveis e economicamente viáveis.

Assim, não é por acaso que diversos autores têm recomendado que nos processos de transição e redesenho de agroecossistemas, sejam observadas diferentes dimensões da Agroecologia, tais como as dimensões técnico-agronômica; socioeconômica e cultural; sociopolítica e, mais recentemente, a dimensão energética.

Entendido deste modo, podemos afirmar que a Agroecologia é uma ciência do campo da complexidade, que busca superar os enfoques cartesianos, reducionistas, e adota um enfoque sistêmico e uma abordagem holística. Nada disso é novo. Apenas recalcamos aqui para tentar refutar alguns argumentos que afirmam que a Agroecologia é uma prática ou um movimento social.

Vamos por partes. Primeiro, se a Agroecologia é uma ciência ela não pode ser uma prática. Na verdade, como visto antes, ela nos oferece ferramentas para a construção de agroecossistemas mais sustentáveis, logo nos dá as bases para muitas práticas que podem ser bastante diferenciadas. Muitas delas podem ser estritamente técnico-agronômicas, mas outras podem ser de outra natureza: sociais, culturais, políticas, etc.

Por outro lado, a Agroecologia também não é um movimento social. Na verdade existem muitos movimentos sociais agroecológicos, que são formados por adeptos da Agroecologia, por pessoas e organizações que acreditam que esta ciência é revolucionária, na medida em que vem se constituindo como um novo paradigma que poderá contribuir para retomar o curso alterado da coevolução social e ecológica, que foi rompido naqueles lugares onde o modelo da revolução verde se tornou hegemônico. Assim, não é a Agroecologia que é um movimento social, como muitos escrevem. A Agroecologia é, na verdade, o elemento galvanizador de quantos participem desses movimentos. É o que lhes dá identidade e unidade. Com isso, não se nega a importância dos movimentos agroecológicos, pelo contrário, se reforça e se destaca seu papel como movimento social que luta por estabelecer um novo caminho para o avanço das sociedades nos processos de desenvolvimento rural e da agricultura, apontando que este caminho pode ser orientado por esta nova ciência em construção, a Agroecologia.

De igual modo, a não compreensão da Agroecologia como uma ciência, leva a que muitos utilizem frases como: “existe mercado para a Agroecologia”, “a Agroecologia agora é uma política pública” ou ainda, “vamos fazer uma feira de Agroecologia”. Todas estas frases mostram um enorme equívoco gnosiológico[2].

Por fim, cabe salientar que existem diferentes tipos de agriculturas alternativas, com diferentes denominações, enfoques, técnicas, normas, preparados, etc, que podem ser chamadas de ecológica, biológica, orgânica, natural, permacultura, biodinâmica, etc. Nada contra elas, mas é importante salientar que esses tipos de agriculturas não necessariamente tomam como referência as bases epistemológicas da Agroecologia e não necessariamente observam as diferentes dimensões antes mencionadas. Em muitos casos, sequer tratam de redesenhar os agroecossistemas tendo como referência o estabelecimento de novas relações funcionais e estruturais de base ecológica. Não compreender estas diferenças tem levado a outros equívocos, como usar indistintamente “produtos orgânicos ou agroecológicos”, ou dar o nome de Feira Agroecológica ao local onde se vende estritamente produtos orgânicos.



[1] Engenheiro Agrônomo, Doutor em Agroecologia pela Universidad de Córdoba, Espanha. Membro do Núcleo de Agroecologia e Campesinato – NAC/UFRPE. 25/11/2016. Email: caporalfr@gmail.com
[2] Gnosiologia = Parte da Filosofia que trata dos fundamentos do conhecimento.

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