Entrevista com o especialista João Abner, da UFRN*
Seguem os problemas de falta de água no Nordeste...
A crise de abastecimento urbano no Nordeste Setentrional,
embora tenha relações com os últimos períodos de seca que a região tem
enfrentado há cinco anos, é explicada pela falta de integração do sistema de
distribuição de água, diz João Abner à IHU On-Line, na entrevista a seguir,
concedida por telefone.
Segundo ele, a cobertura de abastecimento de água nas
cidades do Nordeste é de 92%, em condições normais, entretanto, a crise que se
instala na seca é basicamente na produção por falta integração com os maiores
reservatórios. “No início da década de 1960, as cidades brasileiras tinham
sistemas individualizados de energia, isto é, cada cidade tinha sua fonte de
energia, mas com o passar do tempo foi feita uma rede de distribuição de
energia integrada. O mesmo foi feito com as estradas, com a construção de
rodovias federais que integravam várias partes do país, e o mesmo foi feito nas
áreas de telecomunicações e internet, mas a distribuição de água continua não
sendo integrada no Nordeste. Cada cidadezinha do interior do Nordeste, da
Bahia, de Pernambuco, do Ceará, tem um sistema de abastecimento de água
isolado. Assim, o sistema capta água de um açude, geralmente de médio porte, o
qual em geral foi construído para aquela função específica de abastecer aquela cidade;
é um sistema desintegrado”, informa.
Na avaliação dele, os órgãos responsáveis pelo sistema de
distribuição de água no Nordeste enfrentam problemas porque estão subordinados
às políticas do governo federal. “O que favoreceu para que esses setores ficassem
para trás e não buscassem a modernização gerencial do setor foi a dependência
que os estados da região têm com a política do governo federal. Então, é
incrível que uma companhia de água como a CAERN – Companhia de Águas e Esgotos
do RN fique aguardando decisões do governo federal porque ela não tem autonomia
para resolver seus problemas. (...) Atualmente, essa dependência com o governo
federal está atrelada, justamente, à política da transposição do Rio São Francisco”, denuncia.
Na entrevista a seguir, João Abner apresenta um panorama da
situação geral dos reservatórios do Nordeste Setentrional, comenta o
funcionamento do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco na Paraíba e
sugere a integração do sistema de distribuição de água via adutoras, a exemplo
da experiência “bem-sucedida” de adutoras no Rio Grande do Norte.
João Abner | Foto: Blog Apodiario
João Abner Guimarães Júnior é doutor em Engenharia
Hidráulica e Saneamento e professor titular aposentado da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte - UFRN. Sobre a transposição do Rio São Francisco,
publicou diversos artigos, tais como A transposição do Rio São Francisco e o
Rio Grande do Norte, O lobby da transposição e O mito da transposição.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Qual é a situação da seca no Nordeste
Setentrional, dada a chuva abaixo da média na região e a seca prolongada dos
últimos anos? A seca atual supera as últimas secas?
João Abner Guimarães Júnior — Com certeza a seca atual é a
maior desde 1911, quando começamos a ter registros sistemáticos da ocorrência
de chuvas na região. Nunca se teve um registro de seca contínuo como este dos
últimos cinco anos; o maior registro era de quatro anos. A seca atinge
diferentemente diversas atividades, mas a realidade das atividades agropecuárias
de sequeiro, contudo, é a mais complexa e a mais difícil, porque essas
atividades dependem exclusivamente da chuva. Como é o caso da pecuária
extensiva e a agricultura familiar que são diretamente afetadas pela seca. Além
disso, a seca gera um problema que está impactando a maior parte da população,
que é a questão do abastecimento urbano.
Atualmente estamos vivendo um processo de agudização do
problema da seca no Nordeste. O que ocorre é o seguinte: como nós tivemos, no
final dos cinco anos de seca, um período com chuvas na normalidade ou um pouco
abaixo da normalidade, o déficit de água acumulado nos reservatórios não mudou,
ao contrário, ele se manteve. Isso acontece porque quando chove acima da média
os reservatórios enchem e quando chove abaixo da média os reservatórios se
esvaziam, mas quando chove na média — como agora — o estado dos reservatórios
se mantém. Então, estamos entrando em um processo em que quase todos os
reservatórios médios e grandes do NE estão com baixo nível de armazenamento de
água, e a situação de hoje é pior ou igual à que se tinha na mesma data um ano
atrás, isto é, nesse sentido a seca continua.
Portanto, estamos num estado crítico, porque a seca atingiu
os reservatórios, eles secaram, e agora para recuperá-los precisamos de alguns
anos ou de um ano excepcionalíssimo, com chuvas acima da média. Certamente o
efeito dessa seca vai demorar uns dois ou três anos, e creio que para voltar à
condição inicial temos ainda pela frente três ou quatro anos.
IHU On-Line — Quais são os reservatórios que estão em uma
situação mais crítica e como isso está afetando o abastecimento urbano na
região?
João Abner Guimarães Júnior — O quadro geral é de volume
morto e comprometimento total dos grandes reservatórios, com exceção dos
reservatórios do Rio Grande do Norte, pois a situação do RN é bem melhor e
menos grave do que a de todos os outros estados do Nordeste. A segunda maior
reserva de água que temos hoje noNordeste Setentrional — entre o Rio São
Francisco e o Parnaíba — está no Rio Grande do Norte, é a Barragem Armando
Ribeiro Gonçalves, que tem 450 milhões de metros cúbicos de água. E o maior
reservatório dessa Região é o Açude Castanhão, no CE, que tem 6,7 bilhões de
metros cúbicos de água de capacidade de armazenamento e se encontra com 350
milhões de metros cúbicos.
O Rio Grande do Norte tem a quarta maior reserva de água do
Nordeste, que é a Barragem de Santa Cruz do Apodi, que está com um percentual
de armazenamento de 30%, enquanto a Armando Ribeiro está com um percentual de
19%. Esses dois reservatórios, estrategicamente localizados no centro do RN, e
mais dois outros do interior do estado têm água suficiente para atravessar mais
dois anos de seca, mas, infelizmente, essa é uma realidade que não existe nos
outros estados da Região.
Crise de gestão dos recursos hídricos
Essa crise que estamos vivenciando no Nordeste foi
determinada também por uma crise na área de gestão de recursos hídricos: um
problema foi se somando a outro, e isso agravou o quadro da seca. O exemplo
mais claro disso é a situação do Ceará. No Ceará há muita propaganda de que o
estado avançou na área de gestão dos recursos hídricos, que existe uma
legislação avançada, uma boa gestão, que as mais prósperas e mais conceituadas
empresas do Nordeste da área de recursos hídricos estão localizadas no estado,
mas é onde a gestão dos recursos hídricos foi mais falha. O que está
acontecendo hoje no Ceará é consequência da falta de gestão dos recursos
hídricos.
Vou explicar melhor essa questão: o estado do Ceará tem uma
norma bastante técnica e detalhada, tem um plano de recursos hídricos
atualizado, ao contrário de muitos estados que nem plano têm, mas eles não
colocam esse plano em prática. Na gestão dos recursos hídricos, o estado do
Ceará utiliza o parâmetro Q90+, que tem como referência a vazão mínima
disponível em 90% dos casos e que ocorre em média com frequência de 10 anos, o
que significa que a água está disponível para todos os fins quando a
disponibilidade é maior do que isso, inclusive a Lei Federal 9433 (a Lei das
Águas) determina que, nessas condições, o uso múltiplo de água deve ser
estimulado. Então, em condições normais se utiliza água para todos os fins, sem
restrição. Entretanto, segundo a Lei Cearense, quando se instala uma situação
de seca de 10 anos, com características de intensidade, o Estado deveria
racionar a água para aqueles fins que são menos prioritários, como é o caso da
irrigação. E se a seca se prolongar e for identificada como a maior seca dos
últimos 20 anos, se deveria parar com a irrigação e preservar a água dos
reservatórios para o consumo humano.
O que aconteceu no Ceará? A seca de 10 anos chegou em 2015,
quando o estado do Ceará deveria ter começado a racionar água para a irrigação.
Em 2016, constatado que a seca continuaria, já deveria se ter parado com a
irrigação completamente; entretanto, até hoje o estado do Ceará entrega água
para a irrigação a partir do seu maior reservatório. É por isso, então, que o
abastecimento humano a partir do Açude do Castanhão está comprometido, e se
tornou um grande problema do Ceará dado que a região metropolitana consome água
do interior do estado, ou seja, uma população de 3,5 milhões de habitantes
depende da água do Castanhão, que secou porque se manteve a irrigação em larga
escala durante toda a seca. Parece que, só agora, no final do período chuvoso o
estado vai decidir se vai ser mantida ou não a irrigação.
De outro lado, a cidade de Campina Grande, na Paraíba, a
segunda em importância do estado e uma das maiores do interior do NE, se
encontra a menos de 100 km de reservas de água do litoral que atenderiam
perfeitamente e a um custo razoável, pelo menos, o pouco mais de 600 litros de
água por segundo que vinha sendo retirado em regime de racionamento do açude
Boqueirão, que se apresenta há muito tempo com baixa disponibilidade
comprovada.
Portanto, nesse caso, no mínimo, houve falta de precaução
com o abastecimento de água na Paraíba. Como pode a Companhia de Águas do
Estado enfrentar uma seca terrível como essa sem um plano B de abastecimento de
água para Campina Grande, apostando, como foi o caso, todas as suas fichas na
problemática Transposição do Rio São Francisco?
Infelizmente, essas duas experiências retratam um quadro
generalizado de inoperância desse setor. Entretanto, a seca está mostrando
também muito mais coisas do que as pessoas enxergam.
IHU On-Line — Como o quê, por exemplo?
João Abner Guimarães Júnior — Uma crise dessa dimensão, que
atinge tanta gente ao mesmo tempo, tem que ter uma explicação política. A
situação crítica do abastecimento não pode ser explicada somente pela seca. O
abastecimento urbano de água é um dos maiores negócios que existe no Brasil.
Como é que um setor como esse, de grande importância e comprovada
economicidade, se mostra tão frágil? Entretanto, essa fragilidade do abastecimento
urbano não é um problema só do Nordeste, é do Brasil todo.
A resposta que dou a essa situação é a seguinte: o setor de
saneamento, que enfrenta a mesma situação do abastecimento urbano, vive uma
grande crise. O setor de abastecimento de água é composto por duas atividades:
a parte comercial e a parte industrial. A parte comercial é a da distribuição
de água, e no Nordeste a cobertura de abastecimento de água nas cidades é de
92%. Então, dada essa cobertura, qual é a crise? A crise está na área da produção
de água, mas se formos ver, na prática, existe água para isso: o Ceará, o Rio
Grande do Norte e até mesmo a Paraíba, com todas as suas dificuldades, têm
água. Então, embora a crise da produção de água se dê por vários motivos, um
deles é a falta de integração nos sistemas de produção.
Sistema de distribuição de água não integrado
No início da década de 1960, as cidades brasileiras tinham
sistemas individualizados de energia, isto é, cada cidade tinha sua fonte de
energia, mas com o passar do tempo foi feita uma rede de distribuição de
energia integrada. O mesmo foi feito com as estradas, com a construção de
rodovias federais que integravam várias partes do país, e o mesmo foi feito nas
áreas de telecomunicações e internet, mas a distribuição de água continua não
sendo integrada no Nordeste. Cada cidadezinha do interior do Nordeste, da
Bahia, de Pernambuco, do Ceará, tem um sistema de abastecimento de água
isolado. Assim, o sistema capta água de um açude, o qual em geral foi
construído para aquela função específica de abastecer aquela cidade; é um
sistema desintegrado. O caso do Ceará é bem emblemático porque as pequenas e
médias cidades do estado não têm acesso à água das grandes barragens, elas
ficam penduradas por sistemas individualizados nos açudes médios. Logo, não
precisa ter uma seca de cinco anos para faltar água, basta a seca de um ano
para começar a comprometer o abastecimento de água das cidades.
Qualidade da água
Isso também afeta a qualidade da água: há muito tempo a água
das cidades do interior não é potável. No Rio Grande do Norte existe um grande
comércio não oficial de venda de água, mesmo na época das chuvas, quando todos
os reservatórios ficam cheios e a água se renova e fica com boa qualidade. Os
sistemas de abastecimento e tratamento de água são adequados para água nova,
mas quando a água vai ficando ruim, de baixa qualidade, o sistema de tratamento
não trata a água adequadamente, e começa a haver um comércio paralelo de água.
No Rio Grande do Norte existe o que chamamos de “água de Natal”, pois todas as
cidades do interior recebem essa “água de Natal” mesmo na época em que os
açudes têm água abundante. Isso vai criando um vício na população, o que faz
com que as pessoas não valorizem mais a água da Companhia de Águas e Esgotos do
Rio Grande do Norte – CAERN. Então, cria-se um círculo vicioso: A água da CAERN torna-se de péssima
qualidade, o preço não é reajustado, e as pessoas se acostumam com essa
situação e ficam, cada vez mais,
comprando água fora do sistema oficial. Assim, uma vez que a seca vai se
instalando, a qualidade da água vai piorando e a necessidade de comprar água de
melhor qualidade vai aumentando. Então a situação chega a um ponto em que as pessoas
só usam água da CAERN para os serviços de limpeza. Esse quadro leva à situação
em que estamos hoje.
IHU On-Line – Qual é a dificuldade de desenvolver um sistema
integrado de abastecimento de água no Nordeste?
João Abner Guimarães Júnior — A questão que tem levado esse
sistema à falência é uma questão estrutural, que se deve à política defasada do
sistema de abastecimento e saneamento de água, principalmente por conta da
falta de integração e também da falta de controle e de regulação da qualidade
da água. Em Natal existe uma agência reguladora que controla a qualidade da
água, mas no interior ninguém faz esse controle. Mais absurdo ainda é o fato de
que a tarifa da água do interior do estado é regulada pela agência reguladora
do município de Natal.
Mas o problema central é político. Por que o setor de
abastecimento de água ficou para trás? Ao fazer essa pergunta, não estou
falando nem defendendo a privatização, porque se houvesse vontade política e
compromisso público com a qualidade dos serviços, a empresa pública teria
condições de realizar um bom trabalho. Entretanto, as empresas que prestam esse
serviço não procuram melhorias porque são administradas como repartições
públicas. E, ao contrário, como são empresas de economia mista, deveriam estar
prezando pelo mercado e pela qualidade dos serviços, mas isso não existe.
O que favoreceu para que esses setores ficassem para trás e
não buscassem a modernização gerencial do setor foi a dependência que os
estados da região têm com a política do governo federal. Então, é incrível que
uma companhia de água como a CAERN fique aguardando decisões do governo federal
porque ela não tem autonomia para resolver seus problemas. Quando os problemas
aparecem, ela procura uma solução através do governo federal. Essa dependência
com o governo federal está hoje atrelada, justamente, à política da
transposição do Rio São Francisco. Dessa forma, o próprio Ministério da
Integração é solapado pelos interesses econômicos que estão atrelados à
transposição e às grandes obras, e isso influencia as decisões a serem tomadas
nas pequenas e médias cidades.
IHU On-Line — Por que a situação dos reservatórios e da
distribuição de água do Rio Grande do Norte é melhor e diferente em relação à
situação dos outros estados do Nordeste? Essa situação é explicada por conta da
existência das adutoras?
João Abner Guimarães Júnior — Porque o Rio Grande do Norte
tem uma experiência bem-sucedida, que começou com o maior programa de adutoras
do Nordeste, inclusive com adutoras de caráter regional. Esse programa foi
desenhado no final do século passado, no governo de Garibaldi Alves, em que se
elaborou esse programa de integração.
O Rio Grande do Norte tem quatro mesorregiões: a litoral
leste, onde está a região metropolitana de Natal e a produção da
cana-de-açúcar; a região agreste, que é uma região intermediária; o sertão
central; e o alto oeste. A população do RN é pequena, somos três milhões e 300
mil habitantes, e 60% da população é abastecida a partir do litoral; esse
sistema abastece Natal e tem o maior sistema adutor do estado, que abastece a
região agreste. Então, 60% da população do Rio Grande do Norte está
atravessando essa seca sem grandes problemas. O restante da população, 40% –
que envolve a região do Sertão Central, que engloba as regiões: Seridó, Sertão
de Angicos e Baixo Açu –, é a que mais tem água. Portanto, Seridó, que é
classificada como uma região extremamente seca, porque chove menos, está
margeando uma das maiores reservas de água do Nordeste, que é a Barragem
Armando Ribeiro Gonçalves.
A barragem tem 450 milhões de metros cúbicos de água, mas o
consumo de todas as adutoras que pegam água dessa barragem é de apenas 30
milhões de metros cúbicos por ano. Somente neste ano, a Barragem Armando
Ribeiro Gonçalves recebeu 120 milhões de metros cúbicos de água, mas essa mesma
barragem receberá, segundo as previsões, 60 milhões de metros cúbicos de água
por ano por conta da transposição do Rio São Francisco, nas condições mais
otimistas. Ocorre que, hoje, do jeito que a situação está, ela já recebeu o
dobro disso em um mês.
A população da maior cidade do Seridó, Caicó, finalmente
enxergou que a solução é utilizar a água da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves,
então se construiu uma adutora em apenas três meses, que normalizou o
abastecimento de água, pelo menos em níveis de oferta emergencial. Essa
experiência de Caicó deverá ser copiada num plano para abastecer todas as
cidades do Seridó. Felizmente, o Rio Grande do Norte tem água suficiente para
atender toda a sua população.
É preciso ousar para sair do atoleiro da dependência
financeira das ações emergenciais do Governo Federal. A saída é buscar a
autossustentabilidade com os próprios recursos arrecadados, e no caso do RN é
possível, através da implantação de uma tarifa de água de contingenciamento,
que cobraria em média apenas dez reais mensais a mais, conseguir recursos
financeiros para resolver, pelo menos em caráter emergencial, o abastecimento
de água em todas as cidades do estado. É pouco dinheiro, já que as grandes
obras já estão feitas, são pouco mais de 200 milhões de reais, mas com esse
valor é possível fazer essa integração das cidades que estão com deficiência de
água com as adutoras maiores.
Agora, se você me perguntar por que isso não foi feito
antes, bom, não foi feito antes porque não tinha interesse político pelo
Governo Federal. Há um exemplo na região que é gritante nesse sentido: existia
um projeto de construção de uma grande adutora de caráter regional, a Adutora
do Alto Oeste; quando esse projeto foi levado para o Governo Federal, para
liberação de recursos, o Ministério da Integração alegou que se essa adutora
fosse feita do modo como estava previsto, ela inviabilizaria qualquer
possibilidade de a água da transposição do Rio São Francisco chegar à bacia do
Rio Apodi. Logo, eles cortaram a linha tronco da adutora que levaria água à
cidade de Pau dos Ferros, que se encontra a 60 quilômetros da Barragem de Santa
Cruz do Apodie é a principal cidade da Região que era abastecida por uma
barragem que está seca há mais de três anos. Isso tudo, apesar de o trecho
quatro do Eixo Norte da Transposição, que traria água para o Rio Apodi/Mossoró,
nem mesmo ter sido ainda licitado.
Entretanto, o RN finalmente parece estar tentando se
libertar dessa situação de dependência com o governo federal.
IHU On-Line — Com a construção das adutoras seria possível
manter a irrigação e ainda assim garantir o abastecimento urbano?
João Abner Guimarães Júnior — É preciso, em primeiro lugar,
separar essa questão do abastecimento humano da irrigação. Abastecimento humano
tem que ser analisado sob o ponto de vista dos benefícios sociais, enquanto a
irrigação tem que ser analisada pelo aspecto econômico. O que ocorre na
prática? A lei brasileira é bastante avançada e diz o seguinte: deve haver uso
mútuo da água, mas, em condições de escassez, o consumo humano deve ser
prioritário. Se colocarmos em prática essa lei, teremos sustentabilidade. A
questão é como fazer isso para assegurar que na época da escassez o consumo
humano seja prioritário. Já existem mecanismos para isso: as outorgas de
irrigação, as quais têm restrições, e são condicionadas pela questão
da criticidade da seca.
Depois dessa experiência da maior seca de 100 anos,
espera-se que não se deva continuar oferecendo água em larga escala para a irrigação
em situações de seca prolongada como a atual. É justamente isso que tem levado
a uma situação de instabilidade em relação ao consumo humano. A questão é: como
todas as demais atividades econômicas que têm importância social podem estar
submetidas à política de irrigação? Hoje em dia existe seguro para tudo, mas
por que não existe um seguro para a falta de água na irrigação? Não se pode
comprometer o abastecimento urbano das cidades com a justificativa de que é
preciso manter a irrigação e os empregos relacionados à irrigação.
É possível trabalhar num ambiente onde se possa ter
desenvolvimento econômico a partir da agricultura sem gerar risco de
abastecimento urbano nas cidades. O setor urbano consegue cobrar entre quatro e
dez reais por um metro cúbico de água. Entretanto, a água que é vendida em
carro-pipa no Nordeste custa acima de vinte reais o metro cúbico. A remuneração
da água da irrigação, ao contrário, é baixíssima: custa entre quatro e dez
centavos o metro cúbico de água. Apesar disso, ainda se fala em desenvolver o
Nordeste com a água do Rio São Francisco que custará dez vezes mais.
A transposição do Rio São Francisco e a perda na condução da
água
IHU On-Line — Com tem sido a experiência de funcionamento do
Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco na Paraíba?
João Abner Guimarães Júnior — A primeira coisa que eu
gostaria de mencionar é o caráter experimental da obra de Transposição do Rio
São Francisco. É uma obra única: nunca foi feito no mundo uma obra igual a
essa. Essa obra gera a perenização dos rios intermitentes. Por sorte ela
começou pelo Eixo Leste, mas o ideal é aproveitar a experiência do Eixo Leste
para consertar a obra no Eixo Norte.
A Agência Executiva de Gestão das Águas da Paraíba – AESA
tem fornecido diariamente os dados de volume de água do Açude Boqueirão que
abastece Campina Grande, e a partir dessas informações é possível acompanhar o
volume de água que está chegando ao açude. A informação oficial é de que estão
bombeando nove metros cúbicos por segundo da barragem Itaparica no Rio São
Francisco. Desse valor, há 15% deperda na condução da água por um pouco mais de
200 quilômetros dos canais da Transposição, até a água chegar ao reservatório
de Monteiro. Entretanto, no trecho subsequente de um pouco menos de 200 quilômetros
de escoamento ao longo da calha natural do Rio Paraíba, de Monteiro até o açude
Boqueirão, as perdas estão chegando a 50%. No total estão saindo nove metros
cúbicos por segundo e estão chegando 3,5 metros cúbicos por segundo. Isso
traduz perdas absurdas de cerca de 60%.
Acontece que na Paraíba se criou uma expectativa muito
grande em relação à transposição, e até agora a obra mal está suprindo as
necessidades de Campina Grande. Entretanto, 70% da água do projeto no futuro
próximo serão destinados ao abastecimento de Pernambuco, então imagine como
ficará a situação em Campina Grande quando Pernambuco começar a captar a água
desses canais. Mesmo assim o discurso do desenvolvimento se mantém na PB.
Paradoxalmente, atualmente estão utilizando a água do Rio São
Francisco para recuperar o volume de água do Açude Boqueirão e ainda se
continua fazendo racionamento de água em Campina Grande, o que já poderia ter
sido normalizado. Já que a vazão que está entrando no açude é maior do que a
que está saindo, por que ainda há racionamento em Campina Grande? Se a empresa
que faz a distribuição da água fosse privada, ela estaria preocupada em
normalizar o sistema, porque a arrecadação iria aumentar bastante. Então,
pergunto novamente, por que não se normaliza o abastecimento de água em Campina
Grande? Provavelmente porque estão querendo utilizar a água para atingir o
volume morto, pois quando a barragem atingir o volume morto – e aí está o maior
interesse –, vão abrir a comporta da barragem para que a água do Rio São Francisco
desça rio abaixo, mas ninguém sabe para que isso será feito – talvez seja para
servir aos interesses de alguns que querem fazer irrigação.
Quando analisamos as obras do Eixo Norte, percebemos que a
situação é muito mais preocupante, porque essa é uma obra que tem uma
capacidade de vazão três vezes maior que a do Eixo Leste. No Eixo Norte, os
reservatórios funcionam em um sistema de cascata, por isso, eles terão que ser
enchidos de água para só então poderem verter para os reservatórios seguintes.
Isso vai criar um espelho enorme e aumentará a evaporação da água. Sem falar
que esses reservatórios estão localizados em áreas altas e, por conta disso, a
tendência é que eles tenham grandes perdas por percolação profunda uma vez que
é comum a ocorrência de fraturamento das rochas no substrato cristalino do solo
da região.
Até hoje não se sabe o que vai acontecer em relação ao Eixo
Norte, mas com a experiência que estamos tendo com o Eixo Leste, certamente os
problemas do Eixo Norte serão muito maiores.
IHU On-Line — O senhor disse que é preciso aproveitar a
experiência do Eixo Leste para corrigir o Eixo Norte. O que deveria ser feito?
João Abner Guimarães Júnior — Evitar ao máximo possível a
perenização dos rios com a água da transposição. Por exemplo, estou convencido
de que os canais do Eixo Leste deveriam ter avançado Paraíba adentro. Ou
deveria se aproveitar que a água está chegando em Monteiro e, em vez de soltar
a água no leito do Rio Paraíba, como estão fazendo, deveriam se construir
adutoras de maior porte para levar essa água em maior quantidade para Campina
Grande e daí distribuir para outra cidades que necessitam dessa água. Se for
ver, a água que chega à Monteiro encontra-se em cota superior à da cidade de
Campina Grande. Enquanto isso, essa água está descendo mais de 200 metros,
perdendo energia, e depois é bombeada para chegar a Campina Grande. Esse
bombeamento só deveria ser feito para regiões que comprovadamente não têm água,
como é o caso da Paraíba, e quando realmente houver extrema necessidade. Então,
esse é um projeto que vai ser operado somente em épocas de grande necessidade,
mas ele terá um custo de manutenção permanente. Diante disso, nos perguntamos:
como um projeto que vai funcionar intermitentemente terá recursos para se
manter? Eu não sei. Sinceramente acho que o Eixo Norte deveria ser revisto
totalmente.
Nesse momento, a partir da experiência do Eixo Leste, o
Governo Federal deveria convocar especialistas para analisar o Eixo Norte antes
das retomadas das obras; porque é uma irresponsabilidade continuar com ele do
jeito que está. Infelizmente estamos vivendo um ambiente muito ruim no Brasil e
não sei se as instituições que são responsáveis por verificar essas obras, como
o TCU, estão realmente querendo verificar o que está acontecendo. É
impressionante ver como os processos de mobilização política continuam
existindo em defesa dessa obra; é impressionante que quanto mais problemas vão
aparecendo em relação à transposição, mais a obra ganha adeptos. Existem
comissões em todos os estados voltadas para defender a transposição do Rio São
Francisco, mas não existe nenhuma comissão voltada para analisar a problemática
da seca no Nordeste. É uma esquizofrenia muito grande.
* Publicado originalmente na Revista Unisinos, AQUI.
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